Como ocorre a formação em psicoterapia atualmente?

Em psicoterapia ou psicanálise?

Entrevista com Joel Birman

Em psicoterapia…

Há diversas formas, diversas modalidades de psicoterapia. E há diferentes grupos teóricos de formação de psicoterapeutas, nos quais o que eles oferecem, no nível de práticas, é uma formação que tem nível de um curso de especialização, onde a rigor o sujeito vai aprender teorias psicoterápicas. Por outro lado, vai ter um espaço de prática e vai ter um aprendizado prático que vai vir através da supervisão. Qualquer boa formação em psicoterapia vai passar por um ensino teórico, uma prática e uma prática supervisionada.

2) E quanto à terapia individual? É importante o psicoterapeuta passar por terapia?

Acho que você tem, em geral no campo psi – e isso vem desde a época em que a psicanálise era o modelo terapêutico por excelência, mas acho que as outras escolas também acabaram incorporando isso -, de que o psicoterapeuta tem que passar por uma experiência terapêutica para viver a experiência. Então, esse modelo vivencial, experimental, de o sujeito fazer um processo psicoterápico, é fundamental para uma formação psicoterápica. Acho que hoje esse é um tipo de exigência que está muito generalizado – acho que qualquer estudante de psicologia que quer fazer psicologia clínica, em geral, já busca uma experiência psicoterápica ou psicanalítica, seja por conta das suas dificuldades pessoais, seja por conta de misturar a busca de um tratamento desses com uma parte de seu percurso profissional. Essas coisas hoje estão muito misturadas, diferente do que era há 50, 60 anos atrás. Isso está muito naturalizado no campo psi.

3) O senhor perguntou no início se a pergunta era sobre psicanálise ou psicoterapia. E essa é uma questão polêmica, se a psicanálise seria ou não uma psicoterapia. Como o senhor vê essa questão?

Acho que, historicamente, a psicanálise sempre quis se distinguir de qualquer outra forma de psicoterapia, no sentido de dizer que é um tratamento diferente. O próprio Freud, quando criou a psicanálise, quis distinguir a psicanálise tanto dos tratamentos hipnóticos ou sugestivos, onde ele dizia que o diferencial da psicanálise era a forma como ela tratava a questão da transferência. A transferência, que está presente em qualquer relação interpessoal, inter-humana, vai estar presente em qualquer laço social. Essa transferência, que está em qualquer laço social, vai estar presente em qualquer experiência terapêutica. Vai estar presente na relação médico-paciente como vai estar presente, na época do Freud, no tratamento hipnótico-sugestivo, que eram as terapias que o Freud atravessou para criar a psicanálise. E o que o Freud dizia era que a diferença entre uma psicanálise e uma psicoterapia sugestiva era que a psicanálise tinha um trabalho sobre a transferência que a psicoterapia sugestiva não tinha. Esta produzia, naturalmente, efeitos terapêuticos, curativos, no paciente, mas nessas terapias, a análise da transferência, do que estava em jogo na transferência, não era analisado, enquanto, na psicanálise, a análise da transferência era fundamental. Isto é, era um imperativo da psicanálise que o sujeito pudesse analisar o modelo transferencial que ele tem com o analista. Isso na psicoterapia não se faz. Essa seria a distinção entre uma psicanálise e uma psicoterapia, seria a forma como Freud imaginava que a transferência poderia ser “liquidada”, enquanto nas formas de psicoterapia comuns não haveria essa “liquidação” da transferência.

Então, acho que foi essa a distinção que Freud colocou. Essa história se mostrou muito complicada posteriormente – complicada no sentido de que, se bem que a análise procure trabalhar de fato a questão da transferência, a questão da dissolução da transferência se mostrou muito complicada de se fazer também na psicanálise. Não é que ela não se faça, mas mostrou ser uma experiência muito mais complicada do que Freud imaginava. Isto é, mesmo que a análise tenha sido formalmente terminada, os analisandos continuam muito ligados aos seus analistas, sobretudo quando eles se tornam analistas. Então, essa tal “liquidação” que Freud imaginava se mostrou muito mais complexa do que ele imaginava. As pessoas ficavam muito ligadas aos seus analistas, iam participar das instituições que seu analista participava, estabeleciam uma relação de uma espécie de fidelidade excessiva com seu antigo analista. Mas, independente disso, ter que trabalhar a transferência, ter que dar um destino à transferência, se colocou como um diferencial entre psicanálise e psicoterapia que acho que no campo psicanalítico continua a se estabelecer.

O que também podemos dizer é que de uma forma ou de outra, qualquer tratamento visa a dissolver uma forma de dor ou de sofrimento que um determinado paciente está sentindo, que ele não está conseguindo dar conta – uma determinada forma de angústia, de depressão, alguma produção sintomática que ele tenha. Digamos que a diferença que pode ser pensada entre psicanálise e psicoterapia é que, nas psicoterapias, os terapeutas se centram na resolução do sintoma, é aquilo que eles querem resolver. Na medida em que aquele sintoma foi resolvido ou dissolvido, o contrato terapêutico se rompe, enquanto, para a psicanálise, o sintoma é uma espécie de ponta de um iceberg. A partir do sintoma, o processo psicanalítico quer percorrer toda a estrutura da construção subjetiva daquele analisando. Então, digamos que o que se pretende com uma experiência analítica é maior do que num tratamento psicoterápico, por conta dessa abrangência maior que o tratamento psicanalítico pretende.

Se partirmos para distinções formais, um tratamento psicanalítico dura mais tempo, um psicoterapêutico dura menos; uma análise sugere uma freqüência maior, a psicoterapia, menor. O problema do que está acontecendo hoje é que, de certa maneira, a grande maioria dos pacientes que procura um terapeuta tem uma urgência de resolver determinada questão que talvez não estivesse tão presente nos momentos áureos da história da psicanálise. As pessoas procuram os terapeutas com experiências de muita dor psíquica, de forma que elas querem se livrar ou resolver aquela dor, esperando que a terapia tenha uma eficácia pontal. Isso quer dizer que a demanda em geral para a psicoterapia aumentou bastante por conta disso. E as pessoas esperam que o psicanalista funcione também como um psicotepauera. Isto é, hoje em dia as pessoas têm menos um horizonte de procurar um analista e achar que vão ficar anos em uma análise e tem muito mais um horizonte de que querem uma coisa pontual, que as ajude a sair do impasse que estão vivendo. E isso satisfaz, elas não estão interessadas, como há muitas décadas atrás, em fazer uma investigação meticulosa muito exaustiva da sua história.

Então, vivemos uma época em que a demanda por psicoterapias é muito elevada, em comparação com as demandas de análise – mesmo que as pessoas falem, quando vão

procurar uma psicoterapia, que vão fazer análise. Se você olhar bem, não é uma análise, é uma psicoterapia. Essas duas palavras se misturam. Mas acho que há hoje uma demanda imensa por psicoterapias. As pessoas estão vivendo experiências de dor muito grande e historicamente estão menos interessadas do que antes em fazer grandes investigações exaustivas sobre suas vidas. Elas querem resolver um problema pontual. Se surgir, mais adiante, um outro problema pontual, elas voltam a procurar um terapeuta. Isso não quer dizer que não haja pessoas que façam análise. Só estou fazendo uma comparação por escala. Quando comecei a clinicar, nos anos 70, a demanda maior era por psicanálise, em comparação à demanda por psicoterapia. Hoje em dia, vemos muito mais uma demanda por psicoterapia. Apesar de ainda haver demanda por psicanálise, quantitativamente eu diria que essa relação se inverteu.

Essas diferenças entre psicoterapia e psicanálise também se expressam na formação do psicoterapeuta e do psicanalista?

A formação do psicanalista exige que o analista faça uma análise propriamente dita, ele tem que se submeter a uma análise, seja ela didática ou não. As instituições ligadas à Associação Internacional de Psicanálise exigem que o psicanalista faça uma análise didática obrigatória, com alguém que faça parte daquele grupo. Nos outros grupos, você tem uma exigência de análise, mas a rigor não se fala em análise didática. Mas se você vai fazer uma formação lacaniana ou junguiana, por exemplo, vão exigir que sua análise seja com um lacaniano ou junguiano. Então, no final das contas, acabaram criando diferentes versões da análise didática, na medida em que você só reconhece no processo de formação uma análise feita com um junguiano, lacaniano ou com uma pessoa da associação internacional de psicanálise. Esse é o primeiro elemento da formação.

O segundo elemento é uma formação teórica, e o terceiro, uma prática que seja supervisionada. Eu diria que a formação psicanalítica, com relação às formações psicoterápicas em geral, são formações mais longas. A análise dura mais tempo, os cursos teóricos são mais longos, os processos supervisionados são mais longos, a exigência de reconhecimento pelos pares é um processo também mais longo do que o processo de psicoterapia. Um estudante pode acabar um curso de psicologia, por exemplo, e fazer um curso de especialização em psicologia clínica, em psicoterapia. Em um ano, ele vai aprender um determinado nível de teorização, ele vai ter supervisão, vai exercer sob orientação e aquilo vai dar condições para ele exercer uma prática psicoterápica perfeitamente. Acho que as formações psicanalíticas são mais exigentes em termos de duração, de avaliação. Não estou dizendo, com isso, que são melhores ou piores, só estou dizendo que as regras dos campos são diferentes.

Como o senhor avalia a formação atualmente? Muitos psicoterapeutas reclamam de uma “mercantilização” dos cursos de formação. Como o senhor vê essa questão?

Rigorosamente, a questão do mercado está presente em todas as formações, inclusive a psicanalítica. Exatamente porque cresceu muito a demanda por tratamento, cresceu muito a oferta também. Temos muitos psicoterapeutas e psicanalistas na praça e temos muitos pretendentes a psicoterapeutas e psicanalistas. Então, a disputa pelo mercado é muito dura. Há 20 ou 10 anos atrás, qualquer psicanalista, até com pouca experiência, tinha suas horas cheias, tinha pessoas esperando por ele. Hoje em dia, isso não ocorre, com raríssimas exceções. Somente pessoas muito legitimadas no campo têm essa possibilidade. Fora do Brasil, a mesma coisa. Na Europa – na França, por exemplo, que é uma “Meca” da psicanálise –, raros analistas conseguem viver só de seu consultório de analisa. Eles são obrigados a trabalhar num hospital, num ambulatório, na universidade. Precisam ter outras atividades porque não conseguem sobreviver só de psicanálise. Estou dizendo isso para dizer que a disputa pelo mercado é muito violenta, muito dura. E ela gera, nas relações entre as sociedades psicanalíticas, disputas muito violentas, ao ponto de uma dizer que a prática da outra não é psicanálise. Um jogo baixo que acho que está presente também nas outras formas de psicoterapia. Exatamente porque esse é um mercado que cresceu, mas tem muita oferta, e dentro dessa oferta a disputa se faz. Então, você pode ter diferentes formas de escolas que tem tradições mais bem instituídas, que dão formações melhores e mais consistentes, e você tem escolas claramente picaretas – por exemplo, formação de analistas por correspondência, psicanálise evangélica. Mas é uma picaretagem que se alimenta desse crescimento do mercado.

Como esses psicoterapeutas e psicanalistas podem continuar sempre em formação constante?

A questão da formação permanente acho que é um certo ideal educacional contemporâneo. Acho que todas as atividades sociais hoje que envolvam algum tipo de domínio técnico-científico exigem uma espécie de reciclagem permanente, um processo que se passa no campo psi, no campo da medicina, onde os médicos têm que estar permanentemente se atualizando a respeito de novas técnicas, novas formas de medicamentos etc. E acho que no caso das psicoterapias e da psicanálise é a mesma coisa. Você tem que estar se reatualizando com as novidades, estar se reatualizando para saber como lidar com as novas formas de sofrimento que aparecem na nossa contemporaneidade, como lidar com a síndrome do pânico, com as novas formas de violência, com a anorexia, com a bulimia, com o consumo de drogas. São campos de sofrimento que exigem novas técnicas para você lidar com esse tipo de paciente e me parece que a formação permanente dos terapeutas, essa reciclagem permanente, é para responder a essas novas formas de sofrimento que se apresenta.

Por outro lado, acho que essa forma de formação permanente que está presente nas instituições das quais esses psicoterapeutas e psicanalistas participam é que esse tipo de atividade que a gente faz é uma atividade que gera muita angústia. Terapeuta sofre e ele precisa ter um espaço em que possa dividir, trocar essas experiências com seus colegas. Então, acho que essa questão da formação permanente – além de ter toda uma dimensão técnica, de atualização bibliográfica, de saber lidar com as novas formas de sofrimento – como, ao lado, disso é uma atividade que gera muita angustia e muito sofrimento ao terapeuta, ele precisa fazer parte de uma comunidade de pares para poder trocar. Acho que isso também faz parte dessa formação permanente.

Como ocorre a produção científica em psicoterapia atualmente no Brasil?

Há diferentes níveis de produção cientifica. Você tem uma produção cientifica que se dá através de grupos e instituições psicanalíticas ou psicoterápicas, que têm seus veículos de divulgação, que são em geral revistas, e você tem uma produção na qual essas formas de terapia viram publicações no plano de revistas que passam pela universidade, ligadas, digamos assim, à área de pesquisa qualificada. Então você tem 2 níveis de publicação: um em que a dimensão clínica é mais importante que a teórica, de instituições de psicoterapia e de psicanálise; e você tem publicações de ordem universitária em que a dimensão teórica está mais presente na forma pela qual a clínica é tratada, que podemos estabelecer como pólo teórico-clínico. Então, podemos dizer que, além das redes ligadas à prática psicoterápica e psicanalítica que são desenvolvidas pelas instituições de formação ou as instituições de que os psicoterapeutas fazem parte, há a produção cientifica que se dá no plano das universidades. Aí entra um outro nível de avaliação, de CNPq, CAPS etc. Entra uma produção cientifica de cunho mais universitário. Eu diria que a primeira é mais voltada para um fazer prático, em toda uma dimensão visando ao exercício da prática, enquanto a outra visa a um desenvolvimento teórico-conceitual, ligado mais ao campo de ciência pura, menos à ciência diretamente aplicada. Então, há dois campos de publicações diferente e nos dois você vai ter diferentes formas de psicoterapia e psicanálise. Por exemplo, você tem publicações que são ligadas a instituições com formação de psicoterapias de família, assim como você tem um grupo de universitários que trabalham com psicoterapia de família ou de casal que vai dar origem a publicações mais teórico-científicas, menos imediatamente voltadas para a prática.

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FONTE: http://www.crprj.org.br/publicacoes/jornal/jornal23-joelbirman.pdf

Visualizado em 09/04/2015