Sheila Abramovitch1
Lilian O. e C. de Aragão1

1. Professora adjunta de Psiquiatria da Infância e Adolescência da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ.
2. Psicóloga do HUPE/UERJ.

Resumo

Este artigo discute a depressão na infância e na adolescência, em uma perspectiva clínica, e alerta para o excesso de diagnósticos e medicamentos psiquiátricos usados em jovens, que estão em crescimento e desenvolvimento. Enfatiza, também, a necessidade do encaminhamento ao especialista, devido às nuances sintomatológicas, bem como à variabilidade e à mutabilidade dos fenômenos psicopatológicos nessa fase. O transtorno depressivo na faixa etária estudada é uma condição clínica grave e ocasiona prejuízos na relação do jovem com a escola, família e sociedade.

Descritores: Depressão; Infância; Adolescência; Diagnóstico.

Abstract

This article discusses depression in childhood and adolescence in a clinical perspective, and warns of over-diagnosis and psychiatric medication use in young people, who are in growth and development.Emphasizes also the need for referral to a specialist because of the nuances of the symptoms as well as the variability and mutability of psychopathological phenomena in this phase. Major depressive disorder in the age group studied is a severe clinical condition and causes damage in the relationship between young people and school, family and society.

Keywords: Depression; Childhood; Adolescence; Diagnosis.

INTRODUÇÃO

Crianças e adolescentes podem apresentar diagnóstico de transtorno depressivo. Porém, este é um diagnóstico que deve ser feito com muita cautela, pois é uma condição reservada aos casos de considerável morbidade e mortalidade e, também, porque esses jovens têm risco aumentado para o suicídio1. Trabalhos indicam, na história de adultos deprimidos, a presença de episódios ou quadros depressivos já presentes na infância2,3, considerando a possibilidade de continuidade na vida adulta.

Os sintomas depressivos podem ter outras formas de apresentações em crianças1, e o exame psíquico pode necessitar de adaptações4. Embora depressão e mania tenham sido descritas em crianças e adolescentes, Kraepelin, em 1906, já havia descrito um quadro de psicose maníaco-depressivo em um menino de apenas 6 anos de idade, muitos, ainda, duvidam de sua existência, pelo fato de crianças e adolescentes possuírem “estruturas de personalidade imaturas”, e, por isso, não poderem experimentar extremos de humor5 e os sustentar por muito tempo.

Essa tese vem sendo contestada por vários autores e, a partir da década de 70, começam a despontar pesquisas, que consideram a extensão, não só do conceito de depressão, proveniente do adulto, mas também dos seus tratamentos farmacológicos. Nesse momento, a psiquiatria, na vertente exclusivamente biológica, promove um excesso de diagnósticos − comorbidades − e de medicações abusivas, desrespeitando a criança e o adolescente no conjunto de suas transformações, tanto orgânicas e emocionais, quanto sociais. Muitas vezes, são vítimas de preconceitos, por parte de colegas e familiares, pois receber um diagnóstico psiquiátrico na infância ou na adolescência pode ser uma marca indelével, que os acompanhará por toda vida.

HISTÓRICO

Depressão na criança ou depressão infantil é um termo que não possui o mesmo sentido no adulto. Seu conteúdo é diferente e representa uma experiência de acordo com a idade em que se manifesta6. É considerada como parte do desenvolvimento normal e até necessária para alguns, é um fenômeno patológico para outros. Assim, foram criados termos como afeto depressivo, momento depressivo e equivalentes depressivos, para se distinguir o fenômeno depressivo, que faz parte do ciclo vital, daqueles que se referem à depressão patológica.

M.Klein7 enfatizou os estados depressivos do lactente em que a posição depressiva se instala quando o bebê percebe que sua mãe, aquela que o satisfaz, é a mesma que o frustra. Winnicott8, por sua vez, destacou a posição depressiva que se segue ao desmame.

R. Spitz9 ressaltou um quadro de carência emocional devido à separação prematura materna, que pode evoluir para depressão anaclítica. Após 3 meses, se não tratada, a mobilidade da criança diminui e o quadro clínico complica com insônia; é o que se nomeia de hospitalismo. Se essa condição não for revertida em 3 meses, evoluirá para marasmo e morte.

Nissen10, em um estudo clássico com 6000 crianças, observou estados depressivos moderados e severos em 1,8%. Ele excluiu do estudo as reações depressivas e os humores depressivos: por abandono, secundários ao autismo infantil ou às psicoses esquizofrênicas, da paralisia cerebral e por distúrbios endócrinos. Segundo Nissen, a sintomatologia depressiva dependerá de cada idade e do sexo acometidos.

Nissen verificou que as crianças pré-escolares manifestam depressão através de sintomatologia quase exclusivamente psicossomática. Nos escolares, predominam sintomas tais como inibição afetiva e, também, sintomas físicos como: enurese, onicofagia, manipulações genitais, terrores noturnos, crises de choro e de gritos. Nos pré-adolescentes, a sintomatologia, sobretudo, refere-se à esfera cognitiva, com ruminações, ideias e impulsos suicidas e sentimentos de inferioridade e opressão.

Há autores que incluem nos estados depressivos sintomatologia dita “mascarada”, ou que se expressa por meio de “equivalentes comportamentais”11. Estes surgem como sintomas ou síndromes, que expressam hiperatividade, enurese, encoprese, déficit de aprendizagem ou conduta inadequada. Dessa forma, a depressão pode, equivocadamente, ser nomeada de Transtorno de Déficit de Atenção e/ou Hiperatividade (TDAH), transtorno de aprendizagem ou transtorno de conduta.

Destacamos a presença de sintomas depressivos em 20% das crianças hospitalizadas, e 11% delas preenchem os critérios diagnósticos para transtorno depressivo maior12. Esse era o quadro de Marise, menina de 3 anos, internada na enfermaria de Pediatria do HUPE/UERJ, há 8 meses, com síndrome nefrótica e recusando-se a comer, a brincar e a assistir seus desenhos favoritos na TV. Seu olhar triste e distante, fixo em direção à porta, à espera da mãe, que não vinha visitá-la, denunciava seu quadro depressivo.

Assim sendo, depressão análoga à dos adultos não existe, entretanto pode-se manifestar na criança e no adolescente por sintomas, síndrome ou transtorno depressivo maior. A depressão está referida a uma dor psíquica e a uma perda subjetiva, com as quais aquele sujeito, ainda, não encontrou defesas em sua estrutura psíquica para lidar. O que faz alguém apresentar um transtorno depressivo em tão tenra idade é uma pergunta que permanece em aberto, pois dependerá do conjunto de interações entre fatores constitucionais e ambientais.

EPIDEMIOLOGIA

A prevalência de TDM, na população geral, apresenta-se em pré-púberes em torno de 2% (1%-3%) e, em adolescentes, é de 6%13. A distribuição por sexo apresenta uma ordem crescente conforme a faixa etária, com taxa igual em ambos os sexos, ou ligeiramente maior para o sexo masculino até a adolescência, quando se torna mais frequente em mulheres14. No Brasil, um estudo realizado em Taubaté15, com uma amostra de 1.251 estudantes de 7 a 14 anos, encontrou uma prevalência de 1% de transtornos depressivos. Estudos13 indicam associação de depressão com problemas educacionais, de relacionamento com colegas, autoimagem negativa, uso de substâncias e hospitalização psiquiátrica. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o suicídio é a terceira causa de morte em adolescentes entre 15 e 19 anos.

DIAGNÓSTICO

A partir de 1970, crianças e adolescentes podem apresentar transtorno de humor, incluindo o transtorno depressivo maior e o transtorno bipolar. De acordo com as classificações atuais – Classificação Internacional de Doenças (CID)16 e da Diagnostic Medical Statistic (DSM)17 -, essa faixa etária pode apresentar transtorno depressivo com os mesmos sintomas que os adultos, com leves alterações, como o humor irritável, em vez de deprimido, e a redução ou perda de interesse ou prazer na realização das tarefas, nos esportes, nas amizades, na escola, além da presença de sentimentos de menos valia.

Embora as crianças possam experimentar tristeza e desespero transitórios, também podem apresentar transtorno depressivo com um padrão persistente de alteração do humor.

QUADRO CLÍNICO

A expressão clínica da depressão infantil pode passar despercebida ou ser confundida com uma fase de temperamento difícil ou retraído da criança. Muitas vezes, o comportamento da criança ou do adolescente é alvo de críticas ou até mesmo de punições14. As formas de apresentação da depressão dependem da fase em que ocorrem, e encontramos características próprias do Transtorno Depressivo Maior (TDM) em crianças menores, pré-puberes (9-12 anos) e em adolescentes.

Em crianças menores, se o quadro depressivo se instalar de forma aguda, observamos uma mudança de comportamento bem definida. Mas, com frequência, a depressão apresenta-se de forma insidiosa, com história de vários anos de dificuldades emocionais, com sintomas depressivos, podendo estar acompanhada de hiperatividade e ansiedade. Também é comum as crianças exibirem posturas de oposição e desafio, de hostilidade, instabilidade de humor, irritabilidade e crises de raiva. Esses sintomas causam prejuízos psicossociais e acadêmicos e, após recuperação do episódio depressivo, os marcos normais do desenvolvimento não serão mais atingidos ou ficarão incompletos18.

As crianças também apresentam sintomas físicos como dificuldades em ganhar peso ou perda inadequada para a idade. Podem ter insônia ou hipersonia diurna, agitação ou lentificação psicomotora, fadiga ou perda de energia – expressas no correr e brincar -, sentimentos de desvalia ou culpas, dificuldade de pensar ou de se concentrar – presentes na queda do rendimento escolar – e podem, também, ter pensamentos de morte. É o caso de João, que com 8 anos não ia à escola, e passava o dia pensando em como poderia se encontrar com o pai, falecido há 2 anos.

O TDM em pré-puberes apresenta-se com prevalência de queixas somáticas, com predomínio de cefaleia, podendo surgir um quadro de agitação psicomotora e, também, alucinações congruentes com o humor. A lentificação psíquica e motora podem estar presentes. A ação e a expressão estão alteradas, inibidas, e suas repercussões são notadas na indiferença, no desinteresse pela rotina, como nas atividades escolares e brincadeiras – isolamento e evitação dos colegas. Os pais de Letícia, de 11 anos, notaram que algo não ia bem, quando perceberam que a filha recusava os inúmeros convites de ir à casa das amigas, permanecendo triste e sonolenta em casa. A comunicação verbal e/ou não verbal fica comprometida e as respostas podem ser lentificadas e breves14.

Já o TDM na adolescência surge com anedonia, desesperança, culpas, lentificação psicomotora, podendo apresentar delírios e alucinações. O comportamento é negativista, antissocial, com culpas e recusa de sair de casa e, frequentemente, está associado ao abuso de álcool e de outras substâncias. Podem surgir tentativas de suicídio e a vigilância deve ser redobrada.

TRATAMENTO

Bordin18 relata que a combinação de baixa renda, analfabetismo, desemprego dos pais, más condições de moradia e acesso limitado à saúde e à educação aumenta a morbidade psiquiátrica dessa faixa da população. Jovens vítimas de abusos e maus-tratos podem, também, apresentar quadros depressivos19. Por isso, medidas preventivas e notificações são fundamentais.

O TDM que se apresenta de forma leve deve ser tratado com psicoterapia individual e orientação aos pais. Para o TDM com quadro clínico moderado, devem ser iniciadas a psicoterapia, a orientação aos pais e à escola e aguardada a evolução para se avaliar a necessidade ou não da introdução de psicofármacos20.

No TDM grave, indicam-se os antidepressivos Inibidores Seletivos da Recaptação da Serotonina (ISRS). Até o momento, não existem evidências claras, a partir de estudos duplo-cegos e controlados com placebo, de que os antidepressivos sejam benéficos para crianças ou adolescentes com transtornos depressivos14.

Quanto à eficácia e à segurança dos antidepressivos ISRS em depressão de crianças e adolescentes, a recente revisão de ensaios clínicos com essas drogas, realizada por Cheung et al. (2005)21, conclui pela superioridade de alguns desses fármacos sobre o placebo, sobretudo em adolescentes. Um achado interessante que apoia essa conclusão é que o sistema noradrenérgico só está completamente desenvolvido no início da idade adulta, enquanto o sistema serotonérgico amadurece mais cedo, o que talvez explique a possível melhor resposta aos ISRSs.

Atualmente, existem poucos estudos randomizados investigando a eficácia e a segurança de agentes antidepressivos em crianças e adolescentes. Há um conjunto de evidências que sugere que os ISRSs (fluoxetina, sertralina e citalopram) são eficazes e bem tolerados no tratamento da depressão pediátrica14. Finalmente, existem várias questões muito complexas que precisam de resposta antes que se possa associar, de forma mais definitiva, a emergência de comportamentos e pensamentos suicidas ao uso de antidepressivos22.

CONCLUSÕES

Deve-se ressaltar a importância de se distinguir sintomas depressivos de transtorno depressivo maior. Por outro lado, existe um modo de ser depressivo, ou personalidades tristes e retraídas, e também reações depressivas, como a do luto. O TDM é condição clínica grave, mas, de qualquer modo, qualquer que seja a tonalidade do humor, para aquela criança ou adolescente, terá um valor afetivo particular. Salientamos que momentos depressivos são necessários para a elaboração das perdas que ocorrem durante uma vida e participam do desenvolvimento e crescimento de um sujeito. Há de se continuar a pesquisa por manifestações psicopatológicas próprias da criança e do adolescente para não se aceitar um texto adultomórfico com “leves modificações”. A expressão do TDM na criança varia conforme sua idade e a etapa do desenvolvimento em que a criança se encontra quando adoece. À medida que a criança vai crescendo, os sintomas depressivos poderão se expressar com mais frequência e se assemelharem ao TDM do adulto. 

REFERÊNCIAS

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 Fonte:        Abramovitch S, Aragão LO e C. Depressão na infância e adolescência. Revista Hospital Universitário Pedro Ernesto. 2011;10(2):41-46

Vol. 10 , N.  2  – Depressã0- Abr/Jun – 2011  http://revista.hupe.uerj.br/detalhe_artigo.asp?id=113