Entrevista com Dr. Jorge Forbes. Tema: Ansiedade
Pesquisa realizada em 2005 com 820 pessoas em Porto Alegre e São Paulo pela ISMA-Brasil demonstrou que 83% dos entrevistados apresentaram problema de ANSIEDADE.
Para continuar sobre este estudo, segue um artigo resumido com algumas considerações de Freud sobre o Funcionamento Psíquico:
A doença psíquica na visão freudiana
Do ponto de vista psicanalítico, podemos distinguir basicamente quatro tipos de afecções psíquicas: neuroses, psicoses, perversões e doenças psicossomáticas (LAPLANCHE, PONTALIS, 2001). A seguir contudo vamos nos deter mais detalhadamente sobre as neuroses e as psicoses, com uma breve referência às perversões.
Neuroses
Laplanche e Pontalis definem a neurose como uma “afecção psicogênica em que os sintomas são a expressão simbólica de um conflito psíquico que tem raízes na história infantil do sujeito e constitui compromissos entre desejo e a defesa” (LAPLANCHE, PONTALIS, 2001, p. 296). Como os próprios autores apontam, Freud entre 1800 e 1900 demonstra ter em mente uma distinção relativamente segura do ponto de vista clínico entre psicose e neurose, consagrando uma terminologia que, de forma geral, é aceita até hoje. Contudo, vale a pena esclarecer desde já que “a principal preocupação de Freud não é então delimitar neurose e psicose, mas pôr em evidência o mecanismo psicogênico em toda uma série de afecções” (LAPLANCHE, PONTALIS, 2001, p. 297).
Num primeiro momento (1915), Freud distingue entre neuroses atuais, cuja origem é devida a distúrbios somáticos da sexualidade, e psiconeuroses de transferência e narcísicas, cuja origem se localiza num conflito psíquico. Na categoria das neuroses narcísicas ele inclui nesta época também o que em psiquiatria se define comumente como psicose.
Alguns anos depois (1924), Freud distingue entre neuroses atuais, neuroses propriamente ditas, neuroses narcísicas e psicoses. Hoje em dia a maioria dos autores ligados à psicanálise prefere distinguir entre afecções psicossomáticas, neurose e psicose (maníaco-depressiva, paranóica e esquizofrênica), uma esquematização que grosso modo é seguida pela maioria das escolas psiquiátricas (LAPLANCHE, PONTALIS, 2001).
Uma classificação a parte merecem as perversões (chamadas também por Freud de psiconeuroses). Freud afirma que “a neurose é, por assim dizer, o negativo da perversão” (FREUD, 1905a, p. 157 e p 225). A perversão poderia ser descrita de maneira simplificada como uma expressão da sexualidade infantil, caracterizada pela ausência da repressão, mas não podemos esquecer que ela adquire uma complexidade grande e uma diferenciação considerável. Como observam Laplanche e Pontalis, Freud, num dos seus últimos trabalhos sobre o fetichismo (FREUD, 1927), identifica também nesse caso a presença de defesas e sublinha “a complexidade desses modos de defesa: recusa da realidade, clivagem (Spaltung) do ego, etc., mecanismos que não deixam de se aparentar com os da psicose” (LAPLANCHE, PONTALIS, 2001, p. 344).
Basicamente podemos dizer que a neurose é caracterizada por sintomas (perturbações do comportamento, dos sentimentos ou do pensamento) que manifestam uma defesa contra um conflito interno fonte de angústia, resultando em benefícios secundários (LAPLANCHE, PONTALIS, 2001).
Do ponto de vista psicanalítico, a psicose abrange diversas estruturas: paranóia (incluindo de modo geral as afecções delirantes) e esquizofrenia, por um lado, e, por outro, melancolia e mania. “Fundamentalmente, é numa perturbação primária com a realidade que a teoria psicanalítica vê o denominador comum das psicoses, onde a maioria dos sintomas manifestos (…) são tentativas secundárias de restauração do laço objetal” (LAPLANCHE, PONTALIS, 2001, p. 390).
Como apontam Laplanche e Pontalis, em Freud, a noção de psicose foi evoluindo, de acordo com a maneira como ele concebia o aparelho psíquico na primeira e na segunda tópica.
É contudo no ensaio Inibições, sintomas e ansiedade (FREUD, 1926) que Freud formula definitivamente o conceito de angústia sob um ponto de vista metapsicológico. O ego, na visão freudiana, é vinculado ao id. “O ego é (…) a parte organizada do id” (FREUD, 1926, p. 100). Nisto consiste sua força e sua fragilidade. Força quando se alia ao id, fragilidade, quando se opõe a ele. Na sua função de mediador entre as instâncias vindas do id, do superego e da realidade externa, o ego, diante de um impulso do id, que poderia provocar um desprazer por ser conflitante com a realidade externa e/ou com as exigências do superego, emite um sinal, com o intuito de bloquear o processo interno em andamento. Este sinal de desprazer, destinado a efetuar a repressão valendo-se do princípio de prazer, é a angústia. Desta forma, a angústia fica ligada ao processo repressivo. Freud revê portanto a tese anterior em que a ansiedade era vista como um deslocamento da libido reprimida (FREUD, 1926, p. 111).
[1]Acredito, contudo, que um texto dos últimos anos da obra de Freud nos permita esboçar uma diferenciação bastante satisfatória entre neurose e psicose, que identifica, como já fazia a psiquiatria, na origem das afecções psíquicas um conflito ente mundo interno e realidade externa. O texto é bastante claro nesse sentido.
“Recentemente, seguindo linhas inteiramente especulativas, cheguei à proposição de que a diferença essencial entre a neurose e psicose consistia em que, na primeira, o ego, a serviço da realidade, reprime um fragmento do id, ao passo que, na psicose, ele se deixa induzir, pelo id, a se desligar de um fragmento da realidade.” (FREUD, 1927, p. 158)
Vale a pena frisar que logo depois Freud, como freqüentemente acontece, questiona essa definição a partir de sua experiência clínica, chegando à conclusão que em alguns casos a atitude que se ajusta ao desejo e aquela que se ajusta à realidade podem coexistir e podem constituir a base de uma neurose obsessiva grave (FREUD, 1927). O tema é retomado com mais precisão em dois textos de 1924 (FREUD, 1924a e 1924b), nos quais, mais uma vez, Freud tenta definir em que consiste o conflito que caracteriza esse tipo de afecções.
Como vimos até agora, o conceito de conflito é fundamental para compreendermos a maneira como a psicanálise concebe as afecções psíquicas.[2] Para que possamos compreender em que sentido a psicanálise cura, analisaremos agora alguns aspectos básicos da maneira como Freud concebe o funcionamento psíquico, extraídos da teoria sobre as pulsões e sobre a angústia.
A teoria pulsional constitui um dos pontos centrais e mais originais da teoria psicanalítica freudiana. A preocupação de Freud, como vimos, é essencialmente clínica. Seu objetivo é entender como funciona o psiquismo humano, ao qual, como clínico, podia fazer remontar a fonte de tantos sofrimentos presenciados no dia-a-dia através de seus contatos com os pacientes. Desta preocupação terapêutica partem suas reflexões. O grande mérito de Freud é justamente tentar uma abordagem do psiquismo que dê conta dos conflitos internos e do fracasso dos processos racionais e volitivos no controle do agir humano. A compreensão freudiana das pulsões segue um itinerário evolutivo comum a outros pontos chave do seu pensamento.
Antes de adentrarmos na compreensão desse importante ponto da teoria psicanalítica, será necessário um breve esclarecimento sobre a terminologia empregada. Freud, em sua obra, emprega dois termos: trieb e instinkt, introduzindo uma nuance semântica que não pode ser traduzida na língua portuguesa pelo simples emprego da palavra instinto. Para traduzir a palavra alemã trieb, foi introduzido o termo pulsão, um neologismo que passou a ser comum na linguagem psicanalítica, mas que não tem um lastro semântico na língua falada. Vale contudo a pena observar que o termo trieb foi traduzido na Standard Editon inglesa com o termo instinct, e não com o termo drive, como alguns autores teriam preferido. A edição portuguesa das obras de Freud, assim como a maioria das traduções que dependem da edição inglesa, usa portanto o termo instinto para traduzir trieb (LAPLANCHE, PONTALIS, 2001). Como esclarece Strachey, na Introdução Geral da obra de Freud, no primeiro volume da Edição Standard Brasileira (p. 31-32), a opção se justifica pelo fato do termo drive não traduzir de forma apropriada o termo trieb. No entanto, ele observa que raramente Freud usa o termo instinkt. Fica portanto claro que o termo instinto deve ser entendido como o equivalente de trieb e não de instinkt (o instinto animal).
No presente trabalho ambos os termos (instinto e pulsão) são usados para indicar o termo alemão trieb, mesmo porque as citações são extraídas da Edição Standard Brasileira, que, como vimos, usa o termo instinto e não o termo pulsão. Por outro lado, do ponto de vista semântico, o uso do termo pulsão pode ser mais técnico, mas, por não ter lastro na linguagem falada é ainda menos evocativo do que o uso impreciso do termo instinto. Para que o leitor tenha uma noção completa da riqueza semântica do termo trieb, remetemos aos possíveis sentidos apontados por Hanns (1996, p. 338-354), que podem ser resumidos basicamente da seguinte forma:
Conotações
1. coloca em movimento;
2. engloba elementos universais da espécie;
3. vem de alhures (impessoal, atemporal);
4. imperativo;
5. de origem indeterminada;
6. tem plasticidade;
7. enfoca a geração da ação.
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Significados
1. força interna que impele, impulsiona;
2. tendência, inclinação;
3. instinto, força biológica inata (hereditária);
4. ânsia, impulso;
5. broto, rebento.
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No Projeto para uma Psicologia Científica (1895a), Freud faz uma primeira tentativa, ainda vinculada a uma visão neurodinâmica do psiquismo humano. Esta tentativa, embora sucessivamente abandonada, é importante, porque nos permite perceber uma dinâmica que ficará à base das sucessivas formulações, inclusive daquelas ligadas à metapsicologia. A primeira constatação de Freud é a existência, no psiquismo humano, de uma energia pulsional, que pode ser entendida através dos princípios científicos da dinâmica dos corpos físicos. Freud concebe, nesta fase, o psiquismo como um sistema neuronal, no qual circula uma energia descrita como característica quantitativa Q, sujeita ao deslocamento e à descarga (FREUD, 1895a). Freud constata que o organismo lida com uma inflação de estímulos que o agridem, não somente a partir do mundo externo, mas também do mundo interno. Ele associa a energia pulsional ativada por esses estímulos a três classes de neurônios. O primeiro, chamado f, não inibe a passagem de energia e permanece inalterado após sua passagem. O segundo, j, permite uma passagem parcial de energia, ficando modificado após a sua passagem, sob forma de representação de uma memória. Finalmente, o neurônio v é excitado pela percepção consciente e fornece ao psiquismo a indicação da realidade (FREUD, 1895a). Trata-se de uma antecipação daquilo que mais tarde, ao mapear o processo pulsional, Freud definirá como processo primário, processo secundário (vinculado) e princípio da realidade.
O processo primário “pode ser descrito de forma esquemática: a fonte pulsional envia a energia psíquica sob a forma de estímulos pulsionais cuja manifestação coincidirá com vivências afetivas (de prazer e desprazer) que se associam a determinadas imagens (a maioria de origem externa) produzidas naquela ocasião” (HANNS, 1999, p.85). “De forma geral, no processo primário reina um estado que se caracteriza pela disposição imediata a sair da Unlust para a Lust. pela alucinação, onde se vive no limiar entre a alucinação e a realidade” (HANNS, 1999, p. 88). [3] O que diferencia o processo primário do secundário é o fato da libido, nesta fase, estar livre, num estado fluído em busca de vincular-se a uma representação, que lhe permita o acesso à consciência. Para usar uma expressão de Bion, poderíamos dizer que são percepções em busca de um pensamento.
Já no processo secundário “as pulsões passam a assumir formas mais estáveis no âmbito representacional. Este aparelho (…) acumula, distribui e encaminha as cargas pulsionais a partir de um estoque de associações disponíveis com as quais ele opera segundo regras gerais de raciocínio. Estas regras lhe permitem simular e antecipar a cada momento o melhor percurso” (HANNS, 1999, p. 91).
Primeira tópica
Na primeira tópica, as pulsões percorrem um caminho que atravessa três instâncias: o inconsciente, o pré-consciente e a consciência. A região inconsciente é uma região sem tempo e sem espaço, absolutamente inacessível à consciência, onde a atividade pulsional se encontra em seu estado puro. No pré-consciente o pulsar da vida inconsciente tenta um primeiro contato com a consciência, sob forma de representações, que se apresentam no limiar da consciência. Como o próprio Freud explica: “Podemos falar num pensamento inconsciente que procura transmitir-se para o pré-consciente, de maneira a poder então penetrar na consciência” (FREUD, 1900, p. 635). A grandeza de Freud consiste justamente no fato de ter frisado a importância dos processos inconscientes como base da própria vida psíquica.
“O inconsciente é a esfera mais ampla, que inclui em si a esfera menor do consciente. Tudo o que é consciente tem um estágio preliminar inconsciente, ao passo que aquilo que é inconsciente pode permanecer nesse estágio e, não obstante, reclamar que lhe seja atribuído o valor pleno de um processo psíquico. O inconsciente é a verdadeira realidade psíquica; em sua natureza mais íntima, ele nos é tão desconhecido quanto a realidade do mundo externo, e é tão incompletamente apresentado pelos dados da consciência quanto o é o mundo externo pelas comunicações de nossos órgãos sensoriais.“ (FREUD, 1900, p. 637)
Segunda tópica
A partir da segunda tópica, Freud vê o funcionamento psíquico como um processo mais complexo. O pré-consciente é substituído pela noção de ego. Entre o mundo externo e o mundo interno inconsciente se situa o ego, que Freud define como “uma organização coerente de processos mentais (…), a instância mental que supervisiona todos os seus próprios processos constituintes” (FREUD, 1923, p. 30). “A função do ego é unir e reconciliar as reivindicações das três instâncias a que serve”, ou seja id, mundo externo e superego (FREUD, 1924c, p. 184). Poderíamos dizer que o próprio organismo, para manter o seu equilíbrio diante da pressão pulsional, deve estabelecer barreiras (inibição, recalque), guiado pelo princípio de realidade.[4]
O ego tem no superego um modelo que se esforça a seguir, um modelo que surge no decorrer de desenvolvimento do psiquismo humano, a partir da dissolução do Complexo de Édipo, através da introjeção das figuras paternas.[5] Estas figuras evocam um poder “por trás do qual jazem escondidas todas as influências do passado e da tradição” (FREUD, 1924c, p. 185). Osuperego, embora surja de processos inconscientes, torna-se portanto o representante do mundo externo real.
De acordo com a teoria freudiana, o aparelho psíquico é regulado por dois princípios, o princípio de prazer e o princípio de realidade, (1911), aos quais, mais tarde (1920), se acrescenta o princípio de morte. Este conceito introduz uma mudança substancial à teoria pulsional e merece uma atenção toda particular, pois será, a partir das formulações de Melanie Klein, o ponto de partida de sucessivos desenvolvimentos da psicanálise.
A pulsão de morte é um conceito introduzido por Freud em 1920, na sua obra Além do princípio de prazer. Trata-se de um dos mais discutidos conceitos da teoria psicanalítica, como afirma Daniel Widlöcher ao justificar a escolha deste tema para o Primeiro Simpósio organizado pela Sociedade Européia de Psicanálise em 1984, que resultou na publicação de um pequeno volume (GREEN et al., 1988) contendo as exposições de alguns renomados psicanalistas sobre o tema. Na opinião deste autor, o conceito de pulsão de morte formaliza “uma teoria geral que organiza, num sistema explicativo mais vasto, a interação dos processos psíquicos” (GREEN et al., 1988, p. 8). Para Renato Mezan, trata-se de um elemento novo; um ponto de partida para uma fase diferente da malha conceitual freudiana (MEZAN, 1998). Novo não apenas em relação à teoria das pulsões e à concepção da doença neurótica e por conseqüência da terapia, mas sobretudo novo do ponto de vista antropológico, introduzindo na psicanálise uma dimensão especulativa, a partir do tema da violência. As discussões relatadas no livro A pulsão de morte mostram claramente como estejamos longe de um consenso entre os psicanalistas sobre o alcance e a real interpretação desta teoria, no âmbito dos conceitos previamente estabelecidos por Freud para descrever o psiquismo humano.
Como vimos, Freud em sua primeira formulação, identifica a dominância do princípio do prazer. À base da atividade pulsional humana e do próprio psiquismo estaria o princípio de prazer. O caminho através do qual Freud chega ao conceito de pulsão de morte, em Além do princípio do prazer, é a constatação que o princípio de prazer e de realidade não são suficientes para explicar todas as nuances do funcionamento psíquico verificadas na clínica.
Em Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental, Freud retoma temas já abordados no Projeto e em A interpretação dos sonhos. O que rege o funcionamento dos processos mentais primários, no plano do inconsciente, continua sendo o principio do prazer:
“O propósito dominante obedecido por estes processos primários é fácil de reconhecer, ele é descrito como o princípio de prazer desprazer (Lust/Unlust), ou, mais sucintamente, princípio de prazer. Estes processos esforçam-se por alcançar prazer, a atividade psíquica afasta-se de qualquer evento que possa despertar desprazer. (Aqui temos a repressão).” (FREUD, 1911, p. 237-238)
O estado de repouso psíquico original é perturbado pelas exigências da libido. De início, o aparelho psíquico procura satisfação mediante o processo da alucinação. Ao perceber porém que a alucinação não leva à satisfação, o psiquismo empenha-se em direção a uma “alteração real”, em busca de um objeto, mediante uma “comparação com os traços de memória da realidade” (FREUD, 1911, p. 239). Neste momento, porém, entram em ação os instintos de autopreservação do ego, pois, diante das dificuldades apresentadas pelo mundo externo para a satisfação do desejo, o princípio de prazer é “ineficaz e até mesmo altamente perigoso” (FREUD, 1920, p. 20). O princípio do prazer, portanto, interage com outro princípio regulador, oprincipio de realidade, que está ligado aos processos mentais secundários, os processos em que os estímulos pulsionais são vinculados a determinadas representações. Esta é justamente a função do ego: agir como intermediário entre as exigências pulsionais do inconsciente e o mundo externo, evitando assim que a atividade pulsional se volte contra o próprio indivíduo e, permitindo, ao mesmo tempo, que a sobrecarga pulsional seja por assim dizer “encaminhada” pelo psiquismo de maneira a manter a tensão num estado suportável e o fluxo pulsional numa situação de constância.
Em Além do princípio de prazer, algumas observações a partir da experiência clínica e dos jogos infantis, levaram Freud a rever esta concepção.[6] O que caracteriza essas experiências é a compulsão à repetição. Em si, a repetição não apresentaria nenhum problema, se tivesse como objeto experiências agradáveis. Isto confirmaria a predominância do princípio de prazer, até aqui sustentada por Freud. Mas, em algumas circunstâncias, a repetição não tem como objeto experiências prazerosas e sim experiências dolorosas. Freud constata que, nessas experiências, conteúdos inconscientes reprimidos esforçam-se para se expressar.
A primeira experiência a que Freud se refere é aquela ligada aos sonhos que se relacionam às neuroses traumáticas. “Os sonhos que ocorrem nas neuroses traumáticas possuem a característica de repetidamente [o grifo é meu] trazer o paciente de volta à situação de seu acidente” (FREUD, 1920, p. 24); uma experiência, portanto, nada agradável.
Observando casualmente as brincadeiras das crianças, provavelmente seus netos, Freud percebe o mesmo fenômeno em atividades normais. Neles a criança simboliza, no gesto repetido de jogar longe de si um brinquedo, a experiência de separação da mãe. “A partida dela tinha de ser encenada como preliminar necessária a seu alegre retorno, e (…) neste último residia o verdadeiro propósito do jogo” (FREUD, 1920, p. 26). A criança, inicialmente dominada pela experiência de ser abandonada pela mãe, ao repeti-la na sua brincadeira, assume um papel ativo, como se quisesse controlá-la.
Uma experiência parecida parece ser vivida pelo psiquismo nas representações artísticas que trazem à tona sentimentos dolorosos (como no caso de um drama). Freud conclui: “Mesmo sob a dominância do princípio de prazer, há maneiras e meios suficientes para tornar o que em si mesmo é desagradável num tema a ser rememorado e elaborado na mente” (FREUD, 1920, p. 28). Contudo, observa Freud, em última análise, estas situações ainda têm a produção de prazer como resultado final.
Onde Freud encontra um indício inegável da necessidade de ir além do princípio de prazer, é na prática analítica, em particular no fenômeno da transferência. No processo terapêutico o objetivo é tornar consciente o que é inconsciente. Este processo, contudo, não funciona se for apenas baseado nas considerações teóricas do analista, por este “comunicadas” ao paciente. Para a terapia ter efeito, o paciente é levado pelo próprio processo terapêutico a “repetir o material reprimido como se fosse uma experiência contemporânea, em vez de (…) recordá-lo como algo pertencente ao passado”.(FREUD, 1920, p. 29). Fragmentos da vida sexual infantil e, em particular, elementos ligados ao complexo de Édipo e seus derivados,[7]são retomados no processo de transferência. Mais uma vez, assistimos a uma compulsão à repetição, que se origina nas resistências do ego, em particular no reprimido inconsciente (já que ”grande parte do ego é ela própria inconsciente”) (FREUD, 1920, p. 30). Estas resistências do ego funcionam sob a influência do princípio de prazer, pois buscam evitar o desprazer que a liberação do reprimido provocaria. Neste caso, porém, “a compulsão à repetição (…) rememora do passado experiências que não incluem possibilidade alguma de prazer” (FREUD, 1920, p. 31): seu objetivo portanto não é evitar o desprazer. Os pacientes tendem a repetir na transferência todas essas situações indesejadas e emoções penosas. Isto indica que há na mente “uma compulsão à repetição que sobrepuja o princípio de prazer” (FREUD, 1920, p. 33).
Trata-se de uma necessidade cega do inconsciente de realizar o próprio desejo, que, ao ser bloqueado pelo ego, não tem outra saída a não ser repetir-se indefinidamente. Como explica Mezan, referindo-se ao processo de repetição nas neuroses traumáticas, “repetir é procurar ganhar o controle da situação e também preparar o indivíduo para resistir melhor a traumas futuros, dotando-o da capacidade de desenvolver angústia e desta forma estar prevendo quando eles ocorrerem” (MEZAN, 1998, p. 256).
Para explicar a finalidade a que obedece a compulsão à repetição, é necessário recorrer aos princípios de energia pulsional livre e vinculada.[8] Toda vez que, no psiquismo, se introduz uma quantidade exagerada de excitação (energia livre), é necessário vinculá-la a determinados focos energéticos (representações), para expeli-la sem perder o controle e obter assim o alívio. A vinculação ocorre em nível inconsciente e faz com que o fluxo livre de energia seja convertido numa catexia (fluxo de energia psíquica) quiescente a partir dos traçospermanentes mnémicos, representações de experiências do mundo interno e externo, uma verdadeira rede de simulações mentais (HANNS, 1999) que se originam a partir dasfacilitações deixadas pela passagem prévia de energia psíquica por um determinado caminho.
A repetição se inscreve neste tipo de funcionamento mental. No caso da transferência dos acontecimentos da infância, tal como ocorre na análise, percebe-se que este processo não obedece, como era de se supor, ao princípio do prazer. “Os traços de memória reprimidos de suas experiências primevas não se encontram presentes [no paciente] em estado de sujeição, mostrando-se incapazes de obedecer ao processo secundário” (FREUD, 1920, p. 47), que os reprimiria por serem traços de memórias de desprazer. A compulsão à repetição tem portanto um traço eminentemente instintual e, neste sentido, é uma força pulsional “livre”.[9]
Para Freud, o instinto de morte é um impulso inerente à vida orgânica, que visa restaurar um estado anterior das coisas, é um tipo de pulsão que leva a voltar para o estado inorgânico. À análise dos instintos, Freud dedica boa parte do capítulo quinto de Além do princípio de prazer. A conclusão à qual chega é surpreendente: o instinto somente na aparência é uma força que impele à mudança, na realidade sua natureza é essencialmente conservadora; seu objetivo é voltar a um estado antigo de coisas, “um estado inicial de que a entidade viva (…) se afastou e ao qual se esforça por retornar” (FREUD, 1920, p. 49). Tudo o que vive tende a morrer por razões internas, a tornar-se novamente inorgânico, neste sentido “o objetivo de toda vida é a morte”. Isto leva Freud a afirmar paradoxalmente que os instintos de autoconservação tendem apenas a fazer com que o organismo morra de seu próprio modo. A pulsão de morte é relacionada por Freud a este tipo de instintos.
O funcionamento mental com a introdução do conceito de pulsão de morte passa a ter uma conotação dialética: por um lado uma tendência leva o psiquismo a buscar a paz (por isto Freud se refere ao conceito de Nirvana), enquanto por outro lado, a libido, introduz no psiquismo uma dose de excitação e impulsiona no sentido da busca de um objeto. Num primeiro momento, Freud chega a dizer que o principio de prazer, por visar a diminuição da tensão pulsional, estaria a serviço da pulsão de morte. Mais tarde (FREUD, 1924c) revê esta interpretação e prefere ver na base do psiquismo três princípios distintos, o princípio de prazer, o princípio de realidade e a pulsão de morte.
A este respeito, E. Richardt e P. Ikonen, dizem que o termo pulsão de morte não deveria ser tomado ao pé da letra e sugerem que, como alternativa, se fale em pulsão de ligação, pois o objetivo da pulsão de morte é justamente restabelecer a paz, vinculando a libido não ligada, fonte de toda excitação da mente humana (embora logo admitam que o termo não dá conta de todos os aspectos comumente atribuídos à pulsão de morte) (GREEN et al., 1988, p. 72-75). Para eles pulsão de morte seria “um apaziguamento da libido excedente não ligada”. Laplanche deriva a pulsão de morte do recalque originário e a situa no núcleo do Id. No primeiro caso, temos uma interpretação mais light da pulsão de morte, na linha de Laplanche uma interpretação mais “radical”: a pulsão da morte é considerada o “inimigo do ego”, uma energia hostil que emana do Id.
Angústia
A angústia é outro fenômeno importante para caracterizar o caráter conflitante do psiquismo humano e, por conseqüência, para identificar as falhas que ocorrem no seu funcionamento. Como já observamos, a obra de Freud é a expressão de um pensamento in fieri. Os conceitos vão se organizando aos poucos, sendo continuamente questionados, negados e sucessivamente retomados, numa nova perspectiva. O conceito de angústia, na obra freudiana, segue esse itinerário, que pode ser sintetizado em duas formulações sucessivas.
Primeira formulação
Num primeiro momento, encontramos uma série de textos em que Freud tenta definir a angústia como uma transformação da tensão sexual acumulada, que não consegue sua descarga por via psíquica. Trata-se de um momento inicial, em que o conceito de angústia é marcado por uma “descrição fenomenológica” e não por uma “exposição metapsicológica” (MEZAN, 1998, p. 306). Como veremos a seguir, neste momento Freud ainda está ligado a uma visão neurológica, preocupada em explicar como os fenômenos se dão do ponto de vista do funcionamento econômico do psiquismo.
Vamos começar nossa análise com um texto de 1894, o Rascunho “E” (FREUD, 1892-1899, p. 235-241). Neste texto, a neurose de angústia é relacionada à sexualidade e, em particular, ao coitus interruptus. Freud afirma que a origem da angústia não é psíquica e sim física. A seguir, cita alguns exemplos por ele indagados onde a angústia se faz presente ligada à vida sexual: todos estes casos têm em comum a acumulação física de excitação sexual, como conseqüência de ter sido evitada ou impedida a descarga (o coito).
A angústia seria portanto uma “transformação” que surge a partir da tensão sexual acumulada. Freud relaciona a angústia à melancolia (depressão), que faz com que a pessoa não sinta necessidade da relação sexual. Para entender como a angústia ocorre, Freud examina as duas possíveis fontes da excitação, a exógena e a endógena. No primeiro caso, a excitação provém de fora e atinge diretamente a psique, que procura reduzir a quantidade de excitação, manejando-a através de uma reação adequada, “que reduza em igual quantidade a excitação psíquica”. No caso da endógena, a fonte de excitação é interna (fome, sede, excitação sexual). Ela exige “reações específicas — reações que evitem novo surgimento de excitação nos órgãos terminais em questão” (FREUD, 1892-1899, p. 237-238).
A tensão endógena somente é percebida quando atinge determinado limiar, acima do qual passa a ter significação psíquica, e “entra em contato com determinados grupos de idéias” (FREUD, 1892-1899, p. 238). O objetivo é a busca de uma descarga. “A tensão sexual física acima de certo nível desperta a libido psíquica, que então induz ao coito” (FREUD, 1892-1899, p. 238). Quando a reação específica deixa de se realizar, a tensão aumenta, tornando-se uma perturbação. A neurose de angústia é uma transformação desta perturbação. “A tensão física, não sendo psiquicamente ligada é transformada em angústia” (FREUD, 1892-1899, p. 238), fazendo com que haja um alívio da tensão sexual. Conclui Freud:
“Nos casos em que há um considerável desenvolvimento da tensão sexual física, mas esta não pode ser convertida em afeto pela transformação psíquica — por causa do desenvolvimento insuficiente da sexualidade psíquica, ou por causa da tentativa de suprimi-la (defesa), ou por causa do declínio da mesma, ou por causa do alheamento habitual entre sexualidade física e psíquica —, a tensão sexual se transforma em angústia.” (FREUD, 1892-1899, p. 240)
Como observa Freud, as causas podem ser variadas: desenvolvimento insuficiente da sexualidade psíquica, sua repressão, seu declínio, alheamento habitual. Em todos este casos, a acumulação de tensão física e o evitar a descarga provocam um acúmulo de tensão que se transforma em angústia e se manifesta como “a sensação de acumulação de um outro estímulo endógeno, o estímulo de respirar” (FREUD, 1892-1899, p. 240). Seus sintomas são a falta de ar, palpitações (sensações presentes também no coito). Se na histeria a excitação psíquica acumulada toma o caminho errado, na angústia a tensão física acumulada não consegue entrar no âmbito psíquico e portanto permanece no plano físico. São evidentes os paralelos deste texto com algumas teses que Freud desenvolverá sucessivamente e que inicialmente encontramos esboçadas no Projeto para uma psicologia científica (1895a).
No segundo texto “Primeiros passos em direção a uma teoria da neurose da angústia” (FREUD, 1895b, p. 108-113), Freud procura retomar sua conceituação, em três tópicos, sem contudo apresentar grandes avanços. A neurose de angústia e considerada como o resultado de “numa deflexão da excitação sexual somática da esfera psíquica e no conseqüente emprego anormal desta excitação” (FREUD, 1895b, p. 109). Neste texto, Freud estabelece um paralelo entre neurastenia e angústia. “A neurastenia surge sempre que a descarga adequada (a ação adequada) e substituída por uma menos adequada”, como por exemplo a masturbação substituindo o coito (FREUD, 1895b, p. 110). Já a neurose de angústia “é produto de todos os fatores que impedem a excitação sexual somática de ser psiquicamente elaborada” (FREUD, 1895b, p. 110), pois ela é subcorticalmente despendida em reações totalmente inadequadas, sem que consiga ativar representações psíquicas adequadas. Freud aponta alguns fatores etiológicos da angústia: a abstinência intencional, a excitação não consumada, o coitus reservatus, a senectude, a angústia virginal, a ejaculação precoce e coito interrompido, a masturbação e o estresse. Em todos estes casos, o sintoma da neurose substitui “a ação específica omitida posteriormente à excitação sexual” (FREUD, 1895b, p. 112), por isso na angústia aparecem sintomas que de alguma forma lembram o coito (falta de ar, aceleração dos batimentos, etc.).
Neste texto, Freud faz também uma distinção entre afeto e neurose de angústia. O afeto de angústia é provocado pela incapacidade da psique lidar com um estímulo ameaçador vindo de fora (perigo). Já a neurose de angústia é uma resposta a um estímulo interno com o qual não consegue lidar (o afeto passa, a neurose é crônica).
No capítulo “Relação com as outras neuroses”, que também faz parte do texto Sobre os fundamentos para destacar da neurastenia uma síndrome específica denominada neurose de angústia (FREUD, 1895b, p. 113-115), Freud tenta estabelecer um paralelo entre a neurose de angústia e as outras neuroses, observando que os sintomas de angústia costumam ocorrer juntamente com a neurastenia, a histeria, as obsessões e a melancolia. Um dos fatores parece desencadear os outros. A neurose de angústia teria em comum com a neurastenia o fato da fonte de excitação residir no campo somático e não no psíquico, porém a angústia é devida a um acúmulo de excitação, enquanto a neurastenia é devida a um empobrecimento da excitação. Em relação à histeria, há, em ambos os casos, um acúmulo de excitação, assim como uma insuficiência psíquica que provoca processos anormais e um desvio da mesma para o campo somático. A diferença é que, na angústia, a excitação é puramente somática, na histeria, é psíquica (provocada por um conflito). As duas, observa Freud, costumam combinar com regularidade.
Na “Carta n. 75” a Fliess (FREUD, 1892-1899), Freud introduz um elemento importante para a compreensão da angústia: a repressão. Enquanto os textos anteriores se concentram sobre a questão econômica, este texto introduz uma perspectiva dinâmica. No adulto, regiões como a boca e o ânus, que na infância causavam prazer, causam nojo. Se o prazer persiste, temos uma perversão. Na infância, a liberação da sexualidade não é tão localizada, ela ocorre de forma difusa, podendo interessar qualquer parte do corpo. Num estágio de desenvolvimento mais avançado, na fase adulta, a liberação da sexualidade ocorre mediante:
Estímulos periféricos sobre os órgãos sexuais;
Estímulos internos, que surgem dessas regiões;
Idéias (traços de memória de uma excitação dos órgãos sexuais que ocorreu na infância).
Tal excitação é postergada, pois remete a uma estimulação que ocorreu inicialmente na infância, tornando-se mais intensa daquela inicial. Isto pode ocorrer também conectando lembranças de excitações ligadas a zonas sexuais abandonadas (boca, ânus). Neste caso, contudo, o resultado não é a liberação da libido, mas uma sensação de desprazer, semelhante à repugnância. Isto é o recalque. Algo que livre poderia levar à angústia, ou ligado à rejeição (estado afetivo ligado a processos intelectuais tais como moralidade e vergonha) provoca o recalque normal.[10] No caso das neuroses, Freud observa que, na infância, as experiências sexuais que afetam os genitais, nos homens, nunca provocam neurose, apenas compulsão masturbatória. Quando porém as experiências infantis remontam à excitação ligada à boca e ao ânus, o despertar da libido pode levar ao surgimento do recalque e da neurose. Desta forma, a libido “não consegue (…) passar à ação ou à tradução em termos psíquicos, mas é obrigada a deslocar-se numa direção regressiva (como acontece nos sonhos)” (FREUD, 1892-1899, p. 321). Portanto, o que favorece o recalque e o surgimento do sintoma é a repugnância. Ao produzir-se o sintoma, não se produzem idéias orientadas para um objetivo (objeto). É importante a conclusão à qual Freud chega, pois, a partir deste momento, passa a diferenciar os fatores que causam a libido e aqueles que causam a angústia (FREUD, 1892-1899, p. 321), introduzindo o conceito de recalque, embora admita a dificuldade de esclarecer o que transforma a necessidade em repugnância. Isto nos levará, como veremos a seguir, a uma mudança na sua maneira de conceber a angústia.
Segunda formulação
Na sua primeira formulação Freud concebe a angústia como uma deflexão automática da energia pulsional acumulada pelo bloqueio imposto à sua exteriorização. Este conceito é reformulado no Ego e o Id (FREUD, 1923), onde a angústia passa ser considerada como uma reação do ego diante de um perigo. Esta concepção já tinha sido anunciada na Conferência XXV de 1917 (FREUD, 1916-1917, p. 393-411), onde Freud conclui que ansiedade é gerada por uma reação do ego ao perigo. Assim como a ansiedade realista surge diante de um perigo externo, neste caso a ansiedade surge diante de um perigo interno, ou seja de uma exigência da libido percebida como “perigosa” e acaba resultando na formação de sintomas (FREUD, 1916-1917, p. 405). Neste sentido, a repressão corresponde a uma tentativa do ego de fugir da libido sentida como um perigo. Como podemos ver, já se estabelece uma ligação entre angústia, repressão e sintoma.
É contudo no ensaio Inibições, sintomas e ansiedade (FREUD, 1926) que Freud formula definitivamente o conceito de angústia sob um ponto de vista metapsicológico. O ego, na visão freudiana, é vinculado ao id. “O ego é (…) a parte organizada do id” (FREUD, 1926, p. 100). Nisto consiste sua força e sua fragilidade. Força quando se alia ao id, fragilidade, quando se opõe a ele. Na sua função de mediador entre as instâncias vindas do id, do superego e da realidade externa, o ego, diante de um impulso do id, que poderia provocar um desprazer por ser conflitante com a realidade externa e/ou com as exigências do superego, emite um sinal, com o intuito de bloquear o processo interno em andamento. Este sinal de desprazer, destinado a efetuar a repressão valendo-se do princípio de prazer, é a angústia. Desta forma, a angústia fica ligada ao processo repressivo. Freud revê portanto a tese anterior em que a ansiedade era vista como um deslocamento da libido reprimida (FREUD, 1926, p. 111).
No entanto, uma questão fica em aberto: a angústia precede, é concomitante ou se é subseqüente à repressão? Como observa Mezan, Freud opta “pela precedência da angústia à repressão em todos os casos” (MEZAN, 1998, p. 308) tanto na fase inicial, como naquela que segue à formação de sintomas (o sintoma, de fato, renova o conflito defensivo e o processo de repressão, pois remete a impulsos reprimidos). A angústia precede a repressão pois está ligada ao sinal de desprazer que possibilita a repressão. O aumento de carga energética excitatória necessária para gerar a sensação de desprazer é retirada do próprio investimento libidinal, seguindo uma trilha que “é a reprodução de alguma experiência que encerrava as condições necessárias para tal aumento de excitação” (FREUD, 1926, p. 132). Freud faz remontar tais experiências arcaicas a várias situações, que vão da angústia provocada pelo trauma do nascimento, àquela provocada pela ausência do objeto amado (mãe) e pelo medo de sua perda, ao medo de castração, decorrente do Complexo de Édipo. A respeito do medo de castração, Freud observa que, “com a despersonalização do agente parental, (…) o perigo se torna menos definido” e a ansiedade de castração se transforma em “ansiedade moral”(FREUD, 1926, p. 138).
Em resumo, a angústia é um sinal de desprazer, ativado pelo Princípio de Prazer, diante de um aumento da carga excitatória, cuja função é inibir o investimento do desejo percebido como ameaçador pelo ego. Contudo, a repressão não mata o impulso. Com o recalque, a pulsão reprimida fica vagando pelos territórios do inconsciente, fora do alcance do ego, à procura de se satisfazer achando um caminho alternativo, o sintoma.
Na perspectiva da metapsicologia, a angústia adquire toda a sua complexidade. Ela não é apenas um deslocamento da libido, quando esta não consegue a satisfação pelo caminho desejado, mas um processo que, por estar relacionado com a repressão, se insere no âmago do psiquismo, na encruzilhada entre o ego, as forças do inconsciente, as instâncias do superego e aquelas do princípio de realidade. Na visão psicanalítica, o ser humano é um ser dividido entre forças que atuam em tensão dialética. De um lado, temos as poderosas forças do inconsciente que o impelem à procura da satisfação do desejo. Do outro, os limites impostos pela realidade externa e as normas culturais e morais internalizadas a partir do superego. De um lado, o fechamento narcísico e a agressividade; do outro, a necessidade de ser amado, que leva em direção ao outro e motiva as relações de objeto. Em última instância, poderíamos dizer que a angústia está de alguma forma ligada ao conflito entre pulsão de vida e pulsão de morte, embora Freud aluda a isso apenas de relance, dizendo que angústia pode estar relacionada ao medo da morte, sem aprofundar ulteriormente o tema.[11] A questão será retomada por Melanie Klein que, a partir da pulsão de morte, desenvolverá a sua teoria sobre a ansiedade esquizo-paranóide e a ansiedade depressiva. De qualquer forma, a partir dessas considerações, podemos dizer que, na perspectiva psicanalítica, a angústia representa um aspecto fundamental do psiquismo humano e não apenas uma situação psíquica contingente.
[2] “Nosso plano de cura baseia-se nessas descobertas. O ego acha-se enfraquecido pelo conflito interno e temos de ir em seu auxílio” (FREUD, 1940, p. ).
[4] No decorrer do trabalho usaremos os termos recalque (Verdrängung) e repressão (Unterdrükung) de forma indiferenciada. No entanto, alguns autores, sobretudo aqueles ligados à escola francesa, tendem a diferenciar os termos. Laplanche e Pontalis (2001) definem o recalque como a “operação pela qual o sujeito procura repelir ou manter no inconsciente representações (pensamentos, imagens, recordações) ligadas a uma pulsão” (p. 430) e a repressão como a “operação psíquica que tende a fazer desaparecer da consciência um conteúdo desagradável ou inoportuno: idéia, afeto, etc.” (p.457). Na opinião destes autores “a repressão opõe-se, sobretudo no ponto de vista tópico, ao recalque” (p. 458), ou seja, a repressão seria um mecanismo de remoção de determinados conteúdos da consciência, motivado preponderantemente por fatores morais e culturais, enquanto o recalque seria a passagem do sistema pré-consciente para o inconsciente de determinadas representações pulsionais. Para estes autores, o afeto ligado à representação é sempre reprimido (ou transformado), enquanto a representação é recalcada. Como observa Hanns (1997), o próprio Freud não costuma diferenciar os termos, embora numa nota ao capítulo 7 da Interpretação dos sonhos, ele afirme que o termo recalcado “está mais ligado ao inconsciente”.
[5] A teoria da dissolução do complexo de Édipo é apresentada com mais detalhes no capítulo “Análise sem fim?” (p. 68).
[6] “Deve-se contudo apontar que, estritamente falando, é incorreto falar na dominância do princípio do prazer sobre o curso dos processos mentais” (FREUD, 1920, p. 19).
[7] Podemos lembrar a experiência de perder o afeto exclusivo dos pais com o nascimento real ou temido de um novo irmão, a humilhação de fracassar no disputa do amor exclusivo da mãe ou do pai, a experiência da castração e a necessidade de introjetar a autoridade paterna e as exigências ameaçadoras do superego.
[9] Como observa Laplanche, “As pulsões sexuais de morte funcionam segundo o princípio da energia livre.(princípio do zero), seu fim é a descarga pulsional total, ao preço do aniquilamento do objeto” (GREEN et al., 1988, p. 24).
[10] Freud acena já neste texto a teorias que serão retomadas mais tarde em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (FREUD, 1905), como o fato do desenvolvimento sexual do menino e da menina ser diferente e menciona o abandono do clitóris como fase de desenvolvimento que leva à repugnância sexual, até que seja despertada a zona vaginal.
[11] “A transformação final pela qual passa o medo do superego é (…) o medo da morte (ou medo pela vida), que é um medo do superego projetado nos poderes do destino” (FREUD, 1926., p. 138). Talvez Freud tenha preferido não insistir na pulsão de morte por estar incomodado nessa época pelas reações que a publicação da obra Além do princípio do prazer tinha causado.
Fonte: http://rgirola.sites.uol.com.br/FreudTeoria.htm