Transtorno de Personalidade Borderline (TPB) através da leitura Psicanalítica

“Adolf Stern (1938) foi o primeiro a utilizar o termo borderline na psicanálise, para se referir a uma patologia limite entre a psicose e a neurose, que apresentaria sintomas de ambos. Stern afirmou que a terapia convencional não funcionava com esses pacientes, uma vez que sua questão central não eram os transtornos da sexualidade e sim os distúrbios do narcisismo:

Meus pacientes, como mencionados acima, constituem um amplo grupo indefinido entre psicoses e neuroses de transferência, compartilhando características de ambas, embora mostrem inclinações nítidas para psicose: lembro que costumamos a chamar certas psicoses de “neurose narcísicas”. Esse grupo limítrofe revela a presença de narcisismo num grau inexistente no tipo comum de PA-cientes neuróticos. Seu quadro inteiro fundamenta-se no narcisismo. (Stern, 1938, p158)”.

Percebe-se na citação acima que o autor considerava os casos borderline como pertencendo mais ao campo da psicose – ou neuroses narcísicas, como era também chamada a psicose na época – do que da neurose de transferência. De fato é comum considerar essa patologia como pertencente ao campo da psicose, a psicose, no entanto ao contrario desta, falha no teste da realidade, ou seja, apresenta alucinações e delírios que não estão presentes na patologia borderline (Stern, 1938).

“Hegenberg afirma que tentativas ocorreram para definir transtornos que não se enquadravam nas neuroses e nem nas psicoses: esquizotimia, esquizoidia, pré-psicose, personalidade hebefrênica, psicoses marginais, paranoia sensitiva, certas personalidades perversas, personalidade psicopática, psicopata, personalidade “como se”, falso self e neurose de caráter. O termo borderline surgiu com Sterm na década de 1940, porém este o incluiu entre os neuróticos. Hegenberg, retomando o pensamento de Bergeret, anuncia que foi Eisenstein, em 1949, que agrupou as patologias supracitadas sob o vocábulo borderline. Como se pode observar é difícil definir o borderline, porém, é importante considerar a singularidade do sujeito, tomando cuidado para não cometer generalizações, apesar disto ocorrer quando se trata de teoria.

Segundo Hegenberg, Freud estava interessado nas neuroses, na compreensão da histeria e da castração e não se aprofundou na questão do borderline mesmo lançando a base para a sua compreensão futura como a menção à importância do apoio ou relação anaclítica, e do entorno familiar. Para a compreensão do borderline é preciso uma relação com o outro, uma relação a dois e o encontro com o analista precisa se dar enquanto pessoa e não somente em uma qualidade transferencial.

Winnicott se refere ao borderline algumas vezes, porém esteve voltado à constituição do indivíduo enquanto ser humano, ou seja, a formação do self. O borderline se sente incompleto, ou seja, seu self ainda não está constituído, consequentemente surgem as vivências de vazio e falta de sentido de vida. Isso se dá pelo ambiente não suficientemente bom na infância. Desta forma, o ambiente é importante, pois promove a relação entre as pessoas. É justamente o que o borderline necessita, alguém que o acompanhe na constituição de seu self.

Hegenberg discorre sobre o TPB na visão psicanalítica apresentando as seguintes características: angústia de separação (dificuldade de se separar do outro); dilema com a identidade (dificuldade de constituir sua subjetividade); clivagem (divisão em bom e mau); questão do narcisismo (visualiza suas próprias necessidades); agressividade; impulsividade e; suicídio. Estas podem ser observadas no dia-a-dia das pessoas que apresentam esse transtorno, assim como na literatura. Este autor ressalta que pacientes com esse transtorno necessitam de um longo período de análise, além de experiência e de paciência do analista, uma vez que são pacientes difíceis.

Segundo Lowenkron desde o início da prática psicanalítica a questão do diagnóstico já era pensada para se fazer o tratamento, embora acontecesse junto a este ao longo da análise. Privilegia-se a escuta do sujeito, sua subjetividade em relação à subjetividade do analista, ou seja, em um espaço intersubjetivo de inconsciente para inconsciente.

O paciente com transtorno TPB apresenta uma relação intensa com o analista, já que este funciona como um objeto-subjetivo para ele, ou seja, o analista está constituindo o paciente enquanto sujeito; por essa razão, quando o analista se afasta o paciente se sente inexistente. Em um processo analítico com pacientes com esse transtorno é importante que o analista esteja atento às necessidades do paciente de receber atenção total e se isso não ocorrer, saber acolher e manejar a situação, pois isso pode gerar uma quebra de confiança na relação terapêutica.

Segundo o mesmo autor, em uma visão winnicottiana, o tratamento de pacientes com TPB consiste no analista acompanhar o paciente na constituição de seu self , que se dá através do holding que é o provimento materno no estádio da maternagem. O analista tem que sustentar o paciente, não invadi-lo e acompanhá-lo na construção de sua subjetividade, por meio da regressão a um estado que permita essa constituição.

O paciente com TPB teme ser invadido por ideias do outro, deixando assim, de ser ele mesmo, isso pode ocorrer na clínica, quando o borderline deixa de ouvir seu objeto anaclítico. O analista deve ficar atento a movimentos transferenciais associados a essas questões, pois o paciente pode receber algumas observações como ataque ao seu self não constituído. Por isso a análise se dá ao longo de vários anos, respeitando o tempo singular do paciente no processo dessa constituição.”

Distinção entre realidade e fantasia

Para este modo de funcionamento é muito difícil realizar a distinção entre realidade e fantasia, já que esses pacientes usam muita identificação projetiva. São pacientes difíceis de entender, porque despertam contratransferencialmente sentimentos intensos no analista. O analista não prioriza separar, no que o paciente relata, se são dados da realidade ou não, e nem se são verdades ou não, pois parte do pressuposto de que se está na mente do paciente, é com isso que ele irá lidar. Através do mecanismo que o paciente utiliza, a profissional tenta compreender o que está se passando com o paciente:

“Às vezes ele te coloca numa situação de horror, é como se você fosse roubar alguma coisa dele, e você não está roubando. É um paciente que está trazendo situações em que as pessoas estão sempre o ameaçando. Então ajuda a gente a pensar de que isso faz parte do mundo interno dele, que pode ser fantasia”.

Alguns analistas dizem que é  difícil distinguir realidade de fantasia, porque a impressão que dá, muitas vezes, é a de que o paciente está sonhando, ou que a comunicação dele é “sonhar acordado”. O analista trabalha com os pensamentos e os sentimentos que o paciente verbaliza.

Sobre a distinção entre realidade e fantasia na fala dos pacientes com TPB as profissionais consideram importante trabalhar com o que o paciente apresenta durante a sessão, não se preocupando se o que é relatado é realidade ou fantasia, mas partem do pressuposto que aquela é a realidade do sujeito e é nela que ele acredita.

Fonte: MATIOLI, Matheus Rozário; ROVANI, Érica Aparecida; NOCE, Mariana Araújo. O transtorno de personalidade borderline a partir da visão de psicólogas com formação em Psicanálise. Saúde Transform. Soc.,  Florianopolis ,  v. 5, n. 1, p. 50-57,   2014 .   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2178-70852014000100009&lng=pt&nrm=iso>. acessos em  12  abr.  2022.

Gryner, Joana. A capacidade simbólica dos pacientes borderline: prejuízos no espaço potencial / Joana Gryner; orientadora: Claudia Amorim Garcia. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Psicologia, 2013. 2013. 109 f.

 

Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, temos ao mesmo tempo consciência de duas paisagens. Ora, essas paisagens fundem-se, interpenetram-se, de modo que o nosso estado de alma, seja ele qual for, sofre um pouco da paisagem que estamos vendo – num dia de sol uma alma triste não pode estar tão triste como num dia de chuva – e, também, a paisagem exterior sofre do nosso estado de alma – é de todos os tempos dizer-se, sobretudo em verso, coisas como que uma ausência da amada o sol não brilha, e outras coisas assim. De maneira que a arte que queira representar bem a realidade terá de a dar através duma representação simultânea da paisagem interior e da paisagem exterior. Resulta que terá de tentar dar uma interseção de duas paisagens.

Fernando Pessoa