Após assistir ao filme Cinquenta Tons de Cinza resolvi compartilhar um ponto de vista que não o concebe como um conto de fadas (príncipes não machucam princesas) e nem se detém ao politicamente correto de que um homem jamais poderia bater numa mulher. Já havia me chamado a atenção, no ano passado, a quantidade de pessoas – especialmente mulheres – de vários países, que devoraram os três volumes desse enredo restrito à turbulenta relação de Christian Grey e Anastacia Steele. Tirei o foco da violência contra as mulheres e pensei em alguns aspectos emocionais presentes nesse relacionamento provocativo capaz de exercer tamanho fascínio ou repúdio. Algumas pacientes, inclusive, manifestaram seu desejo de encontrar um parceiro como Christian. Provavelmente porque para além da riqueza, do luxo e dos mimos sedutores, estamos diante de um encontro emocional profundo e transformador. Explico: as experiências primárias da vida de uma pessoa deixam um registro no inconsciente de todos. O amor e/ou o desamor tem início na dupla mãe-bebê. As experiências afetivas dos primeiros anos formam uma matriz de um modo de se relacionar que direciona a vida amorosa dos adultos. Christian carrega no corpo marcas de queimaduras de cigarro como um registro da violência sofrida em seus primeiros anos: uma mãe viciada em crack que também o deixou passar fome. Essas marcas são o retrato das feridas em sua alma. Ele não permite que elas sejam tocadas. Tocar seu corpo é como colocar o dedo nessas feridas fazendo-o sangrar e reviver uma dor intensa. Christian não pode se livrar delas assim como não pode apagar sua história de abuso, de privação, de maus tratos e de desamparo. Ele apenas comunica sua tristeza através das melodias tristes que toca no piano desde muito pequeno. Como defesa frente ao sofrimento e à baixa autoestima, processos psíquicos inconscientes complexos fizeram com que ele desenvolvesse uma personalidade arrogante junto a um narcisismo defensivo. Não é por acaso que ele se utiliza de penas de pavão para acariciar e excitar suas “presas” – penas lindas e coloridas de um animal que ao se exibir é capaz de capturar o olhar de admiração de todos à sua volta. Faltou-lhe, na verdade, um olhar colorido de uma mãe amorosa que refletisse para ele – tal como um espelho – o seu verdadeiro eu. Um olhar constitutivo que pudesse atribuir um sentindo à sua existência. Ao contrário dessa experiência tão importante, Christian refere-se a um mundo interior composto por uma variação de tons de cinza – uma alusão à vida nebulosa que teve, a um contato frio, destituído de afeto e depressivo. Seus pais adotivos, apesar de amorosos, não conseguiram construir uma relação de intimidade com o filho. Christian volta a sofrer abusos aos 15 anos de idade – dessa vez ligados à esfera sexual – por parte da melhor amiga de sua mãe. Viveu uma relação que se estendeu por seis anos sem ao menos despertar-lhe alguma suspeita do que se passava diante de seus próprios olhos. Assim, a atuação da violência de Christian tem raízes naquelas as quais ele próprio esteve submetido em diferentes momentos da sua formação física, psíquica e emocional. Identificado aos agressores, numa espécie de jogo do contrário, ele passou da impotência à onipotência. O exercício de um controle extremo sobre os outros e do impulso de dominação podem ser compreendidos como uma vingança e como uma compensação de um caos interior. Ao evitar pensar na sua dor emocional ele a coloca na ação. De masoquista ele passa a atuar de forma sádica – ambas faces da mesma moeda. A vida de Christian transcorre dessa maneira até ele conhecer Anastacia. Sua proposta dos jogos sadomasoquistas sofre um abalo quando ele fica sabendo da sua virgindade. Uma virgem parece ter-lhe despertado um anseio de iniciar um relacionamento zerado, fazer um recomeço. Ele busca reparar o impacto de pedir a ela que assine um contrato de permissão para práticas sexuais severas, tratando-a com carinho em sua primeira vez. Desde o início há a presença de um erotismo marcado pelos olhares penetrantes que denunciam a paixão cativante de ambos. Christian num discurso convicto de não “fazer amor” mas de apenas “foder” nega o seu mergulho gradativo e curioso no mundo emocional de Ana e no seu. Ela, com sua meiguice e sinceridade, o leva a baixar a guarda e a se permitir experienciar um novo tipo de ligação. Pela primeira vez ele dorme na mesma cama com alguém, fala sobre lembranças do passado, de seus pesadelos. Pela primeira vez ele parece se sentir com coragem de tocar em suas feridas e com o tempo a autoriza a tocá-las. A entrega de Ana ocorre após ela responder que confiava nele. Na verdade, os dois vão construindo uma relação de confiança básica necessária para a descoberta de vínculos verdadeiramente amorosos. As dificuldades de uma pessoa encontram caminhos distintos para serem superadas. Um deles é a reparação. Por exemplo: Christian que passou fome na infância, ajuda crianças vítimas da fome na África fazendo generosas doações. Na vida amorosa a reparação pode ocorrer através de uma relação nova, esperançosa e diferente daquelas carregadas de sofrimento. Experiências compartilhadas permitem a descoberta do amor dentro e fora de si. Esse encontro acontece entre Christian e Ana desde o início. Ambos ficam absortos um no outro interessados em desvendar os mistérios de cada um. Ana se arrisca. A mãe amorosa de Ana deixa de ir à sua formatura optando em ficar em casa com o atual marido que tinha se machucado. Ana parece não ser tão especial para a mãe quanto seus maridos. Nessa perspectiva, o encanto que Christian provoca em Ana, e parece repercutir em muitas almas femininas, parte da presença constante dela na mente e no coração dele. Existir para alguém é ocupar um lugar especial na vida de uma pessoa e no mundo – uma necessidade humana importante. Esse desejo se potencializa naqueles que tiveram esse tipo de falha em suas primeiras vivências. O desejo passa a ser então o de ter um olhar dedicado, com sintonia e sonho – uma nova edição – tal como uma boa mãe devotada ao seu bebê. A experiência de continuidade e a empatia de Christian e de Ana os levam a ir ao encontro das necessidades físicas e emocionais um do outro, reparando certos danos que sofreram no passado. Bem maior que o valor material dos presentes que ele lhe dá, é esse valor afetivo da presença de um dentro do outro. Não é novidade para ninguém que os relacionamentos amorosos são complexos e todos os encontros inéditos. Os comportamentos sádicos e masoquistas, entre outros tipos de perversão, fazem parte do imaginário coletivo. Aqueles que desconhecem esses seus impulsos naturais podem desenvolver patologias neuróticas por vezes bastante dramáticas. Relações amorosas não seguem uma cartilha, não se encaixam em padrões normativos e julgamentos morais limitam a nossa compreensão. Como Christian e Ana, as pessoas que se arriscam encontram maneiras próprias de conviver com seus desejos contraditórios, com o prazer e a dor. Quero ressaltar que conhecer os próprios impulsos não é sinônimo de sair por aí maltratando, machucando e violentando verbalmente e fisicamente ninguém. Mas poder sentir-se livre da culpa gerada pelas fantasias que perturbam muita gente. É aceitar a condição humana composta não apenas de sentimentos e pensamentos nobres, bondosos e generosos. Claro que eles também existem. E na maioria dos casos predominam. Entretanto, impulsos de vida e de morte coexistem e não são fáceis de serem administrados individualmente e nem na relação com o outro. Portanto, não há de se esperar que os relacionamentos transcorram de forma linear. São dinâmicos cheios de curvas, atalhos e por vezes, abismos, destoando da paz paralisante de uma estrada reta que muitos gostariam de encontrar. Nesses termos esse filme perturba e atrai por revelar tais contradições. As pessoas se identificam nas vivências de amor, de desamor e podem se remeter à própria história – já que não existe um ser humano sem a sua história. Ana testa seus limites e termina o relacionamento com Christian quando sente que ele os ultrapassou. Essa atitude estabelece um limite necessário para o surgimento do novo. Ele parece que não contava com isso. A partir da separação ele não consegue mais manter a negação acerca de seus sentimentos e volta a procurá-la. Ana surge em sua vida como uma esperança de ele encontrar uma luz em seu universo sombrio.

*Tere Yadid Sztokbanttere@psico.net.br   Psicóloga, Psicanalista autora do livro “Escolhas e Relações Amorosas”