E se eu te contar que já estávamos isolados fisicamente, e ninguém (re) parou?

25/03/2020

Caroline Gouvêa S. Wallner*

Era uma casa sem gente dentro. Cada pessoa no seu cômodo, sem olhar, sem conversar e perceber o outro que estava no mesmo ambiente.

Na aceleração cotidiana e na ditadura da produção constante do sucesso o ser humano foi ficando sozinho, isolado no seu próprio mundo, descuidado com seus hábitos, desamparado no seu mundo particular.

Pessoas chegavam do trabalho, cansadas e sem tempo para o outro dentro da sua casa. Aquele momento de partilha e convivencia dentro de casa não aconteciam.

Nos restaurantes, parques, ambientes sociais haviam pessoas porém distantes uma das outras, cada uma no seu mundo particular do celular. Desconectadas fisicamente. A produção e a imagem do sucesso não podiam parar. Lugares sem gente dentro!

O tempo ficou líquido, os vínculos sociais cada vez mais voláteis, imediatos, instantaneos e frágeis. Uma insatisfação constante. Lembra dos slogans:  “a ditadura da felicidade”; “é proibido ficar triste, fracassar, dar pausas ou desacelerar”?

Esta “ditadura do sucesso” ecoou no nível de ansiedade e estresse.

O ser humano foi adoecendo, preso e alienado em si mesmo sem considerar o outro com um tempo para olhar e escutar…

E no meio deste caminho acelerado e desconectado apareceu uma doença física da ordem viral que determinou às pessoas que ficassem dentro de casa – aquela casa sem gente dentro – com uma redução daquelas atividades da “correria insana focada exclusivamente na produçao”. Um tempo para olhar para o outro além de si mesmo. Um tempo para si conectar.

Uma pedra no meio do caminho: um mal-estar, um sofrimento para pensar na vida?

O que estamos fazendo da nossa vida? Por que a eminencia da morte real causa tanto desconforto?

Porque é algo desconhecido, causa desamparo e não conseguimos capturar o registro real da morte para prevenir o mal estar gerado. O sujeito pode entrar em pânico. O pânico se dá quando o sujeito se encontra, inesperadamente, com a dimensão da falta. Ele  representa apenas uma das várias possibilidades de o sujeito se relacionar com o seu próprio desamparo, em um esforço extremo de pré-simbolização, pois antecipa a experiência do morrer – como representação imaginária da entrada na própria morte.

Freud (1926/1975d) situa o desamparo muito além de uma condição acidental e traumática ou como regressão a um estado primitivo de insuficiência psicomotora. Para ele, o desamparo diz respeito a uma fundamental falta de garantias para o funcionamento do aparelho psíquico, pois este é incapaz de promover uma apreensão simbólica definitiva para questões fundamentais do sujeito, como a própria morte, o destino, etc. Na própria ordem simbólica, há algo que é frágil, mas que, paradoxalmente, se abre para o mundo dos possíveis, a partir do qual o sujeito pode se constituir. Apesar dessa lacuna, a lei simbólica pode se exercer de maneira a atender as condições mínimas necessárias ao bem-estar do sujeito. Pensamos que, no pânico, devido ao desamparo no qual o sujeito está submerso, essa fragilidade toma proporções excessivas que, por isso mesmo, o deixa desamparado.

A forma de lidar com o mal-estar é individual e particular para cada pessoa. Cada um acionará mecanismos de defesa psíquicos conforme sua história de vida e seu modo particular de funcionar.

Freud conceituou o sintoma escutando as queixas de suas pacientes. Era um olhar médico, curioso. Concluiu que o sintoma não era sinal de uma doença, e sim, a forma de expressão particular de um conflito psíquico. O sintoma ganhou o estatuto de formação do inconsciente. Como uma mensagem a ser decifrada que pode ser interpretado, renomeado e até curado. O sintoma é algo que se repete e que muitas vezes a pessoa não consegue sair dele sozinha, queixa-se de algo causador de sofrimento, porém sente-se ligada a ele, “é mais forte do que eu”. Para Freud, os sintomas têm um sentido e se relacionam diretamente com a vida do sujeito que o produz.

A angústia se manifesta sob a forma de “um medo realístico, o medo de um perigo que era realmente iminente ou que era julgado real” (Freud, 1926/1980, p. 131). A angústia é a reação a esse perigo e o sintoma é criado para evitar o surgimento do estado de angústia. A formação de sintomas, dessa maneira, põe termo à situação de perigo. A angústia é, portanto, uma reação a uma situação de perigo. A reação de angústia sinaliza a presença de uma situação de perigo, e é para fugir a essa situação de perigo que se criam sintomas. A convicção freudiana é de que os sintomas têm um sentido que pode ser decifrado como as demais formações do inconsciente ( é uma elaboração psíquica e simbólica, cuja forma depende das inscrições psíquicas, ou memória inconsciente, em um sujeito).

O sintoma é expresso através da linguagem no discurso e no corpo e, pela interpretação, é possível alcançá-lo evocando suas ressonâncias semânticas. O tratamento analítico é, então, orientado para libertar, pela via do significante, a insistência repetitiva que há no sintoma e a verdade que aí se oculta.

Descobriu que adoecemos das palavras e podemos nos tratar por meio delas também. Legitimou um tratamento para os sintomas pela via da palavra que toca o corpo.

A OMS atualiza diariamente o número de casos de doenças e mortes por todas as partes do planeta. Essas pessoas podem ou não desenvolver transtornos ansiosos e depressivos. Não é algo pré-determinado, se isso logo aquilo.

Vamos lembrar do estresse e do isolamento também provocados pela ditadura da produção de forma imediata e sem fracasso?

E  no momento atual uma doença física inseriu um tempo de pausa…

Todos fomos convocados a olhar, escutar e perceber o outro dentro da sua própria casa, incluindo todos os outros que também estão inseridos nesta sociedade.

Nós vivemos e nos relacionamos uns com os outros, estamos inseridos numa sociedade.

O nível de ansiedade, estresse e depressão como efeito desta ditadura do sucesso também vem trazendo vários prejuizos manifestos em sintomas físicos e psíquicos.  E ninguém (re) – parou.

O correr da vida embrulha tudo.
A vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem

Guimarães Rosa

Bibliografia citada:

Freud, S. (1975d). Inibições, sintomas e ansiedade. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 20, pp.79-171). Rio de Janeiro:Imago (Trabalho original publicado em 1926).

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Sobre a Autora:  Caroline Gouvêa S. Wallner* CRP04/25492Psicóloga (2006); Especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial; Psicanálise. Editora e responsável pelo o Psicanálise e Amor                        Atendimento clínico há 16 anos. Contato:  (15) 98119-7327 carolinegouveapsi@gmail.com

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