Por: Caroline Gouvêa S. Wallner
A humanidade convive com a loucura há séculos e, antes de se tornar um tema essencialmente médico, o louco habitou o imaginário popular de diversas formas. De motivo de chacota e escárnio a possuído pelo demônio, até marginalizado por não se enquadrar nos preceitos morais vigentes, o louco é um enigma que ameaça os saberes constituídos sobre o homem.
Na Renascença, a segregação dos loucos se dava pelo seu banimento dos muros das cidades européias e o seu confinamento era um confinamento errante: eram condenados a andar de cidade em cidade ou colocados em navios que, na inquietude do mar, vagavam sem destino, chegando, ocasionalmente, a algum porto.
No entanto, desde a Idade Média, os loucos são confinados em grandes asilos e hospitais destinados a toda sorte de indesejáveis – inválidos, portadores de doenças venéreas, mendigos e libertinos. Nessas instituições, os mais violentos eram acorrentados; a alguns era permitido sair para mendigar.
No século XVIII, Phillippe Pinel, considerado o pai da psiquiatria, propõe uma nova forma de tratamento aos loucos, libertando-os das correntes e transferindo-os aos manicômios, destinados somente aos doentes mentais. Várias experiências e tratamentos são desenvolvidos e difundidos pela Europa.
A partir da segunda metade do século XX, impulsionada principalmente por Franco Basaglia, psiquiatra italiano, inicia-se uma radical crítica e transformação do saber, do tratamento e das instituições psiquiátricas. Esse movimento inicia-se na Itália, mas tem repercussões em todo o mundo e muito particularmente no Brasil.
Nesse sentido é que se inicia o movimento da Luta Antimanicomial que nasce profundamente marcado pela idéia de defesa dos direitos humanos e de resgate da cidadania dos que carregam transtornos mentais.
Movimento Antimanicomial que remete às conquestões que envolvem a institucionalização do sujeito, aliás, dentro dos manicômios, as pessoas eram observadas e tratadas como objeto e não como sujeito.
O Movimento Antimanicomial , também conhecido como Luta Antimanicomial, se refere a um processo mais ou menos organizado de transformação dos Serviços Psiquiátricos, derivado de uma série de eventos políticos nacionais e internacionais.
Na sua origem, esse movimento está ligado à Reforma Sanitária Brasileira da qual resultou a criação do Sistema Unico de Saúde – (SUS); está ligado também à experiência de desinstitucionalização da Psiquiatria desenvolvidas em Gorizia e em Trieste, na Itália, por Franco Basaglia nos anos 60.
Como processo decorrente deste movimento, temos a Reforma Psiquiátrica, definida pela Lei 10216 de 2001 (Lei Paulo Delgado) como diretriz de reformulação do modelo de Atenção à Saúde Mental, transferido o foco do tratamento que se concentrava na instituição hospitalar, para uma Rede de Atenção Psicossocial, estruturada em unidades de serviços comunitários e abertos.
Amarante, ao coordenar uma pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública, define reforma psiquiátrica como:
“Um processo histórico de formulação crítica e prática que tem como objetivos e estratégias o questionamento e a elaboração de propostas de transformação do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria. No Brasil, a reforma psiquiátrica é um processo que surge mais concreta e principalmente a partir da conjuntura da redemocratização, em fins da década de 1970, fundado não apenas numa crítica conjuntural ao subsistema nacional de saúde mental, mas também e principalmente, na crítica estrutural ao saber e às instituições psiquiátricas clássicas, no bojo de toda movimentação político-social que caracteriza esta mesma conjuntura de redemocratização (Amarante, 1995, p.91).
Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) surgem como resposta às aspirações da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Tal serviço possui cinco características fundamentais no que diz respeito a sua “prática terapêutica”: garantia de direito a asilo (o que não significa isolamento ou exclusão); agilidade de respostas às situações de crise; inserção no território; inversão no investimento (significando dar ênfase à reprodução social dos usuários, ou seja, sem uma preocupação com estruturas clínicas ou quadros psicopatológicos) e, por fim, processo de valorização, entendido como a participação das instituições no processo de intercâmbio social.
Tais características dos CAPS são aplicações institucionais do modelo basagliano. São princípios que regem o funcionamento cotidiano dos serviços abertos de saúde mental. Ao abordarmos esses aspectos, estamos adentrando o campo das políticas públicas de saúde mental preconizadas pelo Movimento da Reforma Psiquiátrica.
Partimos do pressuposto de que para garantirmos o avanço da Reforma Psiquiátrica Brasileira para além da criação de novos serviços, precisamos de profissionais imbuídos de um arcabouço teórico profundamente distinto do modelo anterior (manicomial). Consideramos que as novas modalidades de atenção em saúde mental não devam ser resumidas a novas técnicas de tratamento, mas constituam outra política, que atente para a ética da inclusão, inclusão das pessoas portadoras de transtorno mental como sujeitos com desejos e necessidades, e não como apenas objetos de estudo com o foco apenas na resolução dos sintomas, medicalização da “loucura “e reinserção social.
Para mim, este é um dos grandes desafios da Reforma Social, inserir o sujeito como sujeito desejante na sociedade e inserir profissionais com uma visão mais dinâmica sobre o funcionamento do sujeito em sofrimento. O sujeito que procura um serviço de saúde mental é alguém que sofre. Com Soller podemos afirmar que o cogito desse sujeito poderia ser: “sofro, logo sou”. Portanto, quem busca acolhimento em serviço de saúde mental não é o sujeito da verdade, mas o sujeito do afeto.
Com isso podemos pensar no sujeito como desejante de um laço com o outro, com uma necessidade de afeto do outro. Portanto como pensar em saúde mental se essa preocupa-se com as ações políticas e eticamente orientadas para as peculiaridades de certo grupo? Acredito que o caminho seja o laço através da inserção do sujeito no discurso, integrando aquilo que é individual e particular para cada sujeito no social com o sistema e com o outro da relação.
” Longe de a loucura ser um fato contingente das fragilidades de seu organismo, ela é virtualidade permanente de uma falha aberta na sua essência. Longe de ser um insulto para a liberdade, ela é sua mais fiel companheira, seguindo seu movimento como uma sombra. E o ser do homem, não somente poderia ser compreendido sem a loucura, como não seria o ser do homem se, em si, não trouxesse a loucura como o limite da liberdade.” Lacan,J., “Formulações sobre a causalidade psíquica” in Escritos .J. Zahar ed..,R.J., 1988
É na angústia que o homem toma consciência de sua liberdade (…) na angústia que a liberdade está em seu ser colocando-se a si mesmo em questão”. (SARTRE, 2002, p.72).
Minha reflexão é também sobre os profissionais de saúde inseridos nos sistemas de saúde. Como os profissionais de saúde estão cuidando do seu sofrimento individual para que possam ajudar o outro na construção de um laço possível de afeto?
” A responsabilidade do homem não é apenas consigo mesmo, mas também com toda a humanidade.” Sartre
Para cuidar do outro é necessário cuidar de si mesmo.
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Caroline Gouvêa S. Wallner- Psicóloga Clínica desde 2006, pelo CES/JF, CRP04/25492. Estuda, vive e pratica a psicanálise há 16 anos, Especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela Estácio de Sá. Pesquisadora em casos de Depressão e Ansiedade. Atende Adolescentes e Adultos. carolinegouveapsi@gmail.com
Fontes:
Amarante, P. (1995). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Panorama/ENSP.
Reforma psiquiátrica e clínica da psicose: o enfoque da psicanálise, http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-03942009000200004
A reforma psiquiátrica brasileira e a política de saúde mental, http://www.ccs.saude.gov.br/vpc/reforma.html