Transformaçōes psíquicas: do antes ao depois.

Caroline Gouvêa-CRP04/25492- 25/03/22

Quando penso na palavra “transformações”, imagino uma passagem de um estado para outro.  Será que em nosso psiquismo também pode acontecer transforma-ações? Brincando um pouco com a palavra.

Penso que todo mundo, um dia, já experimentou o desconforto que a angústia traz. No entanto, a minha análise percorre também aos momentos atuais:  será que com o avanço da modernidade é  “permitido”: sentir algum desconforto e escutá-lo como uma possibilidade de transformação?

É importante frisar que o sofrimento não tem uma manifestação única para todos os indivíduos de uma mesma família, cultura ou período histórico. O que é lido como sofrimento para um, não é, necessariamente, para outro, mesmo quando submetidos às mesmas condições ambientais adversas. Ou ainda, aquilo que é sofrimento para alguém, pode ser prazer para outro e vice-versa.Resta ainda lembrar que no sofrimento é possível encontrar uma mesclagem de prazer e dor, simultaneamente (Brant, 2001a).

Sofrer, sentir dor, ficar triste, demonstrar que está angustiado, entre outros nomes para os sentimentos.  Será que na modernidade onde há um lema explícito: “a moda é ser feliz, agora, e não depois”, é possível sentir aquilo que é inerente ao ser humano, o sofrimento, e não se culpar por  estar “fora” de um rótulo ? Rótulo? Ditado por quem?

E se as emoções nos envolver com corpo e alma, toleraremos com paciência para se conectar instrospectivamente com elas, a fim de enfrentar e entender, sem buscar uma solução imediatista que anestesie o saber sobre o conhecimento? Ou será que estamos caindo numa armadilha e reforçando cada vez mais o imediatismo, o determinismo, como por exemplo: a auto medicalização da vida?

Nem todo sofrimento é doença. 

Não há como“fazer um omelete sem quebrar os ovos”. Não há como “pisar em ovos”sem quebrá-los. Da mesma forma, não há criação ou transformação sem corte, portanto, sem sofrimento.

A Angústia, segundo Jacques Lacan, é o afeto que não engana. ([1962-1963]. A angústia é o sinal do direcionamento da cura do paciente, a bússola que aponta para aquilo de mais estranho (Unheimlich) na sua experiência analítica, mas também para aquilo de mais íntimo, sua “ex-timidade”. Um “sinal” (LACAN, 1962/2004, p. 185) daquilo que o sujeito evita e que define a sua verdade

É uma aflição que dói no corpo e na mente, e não aparece nos exames de laboratório ou ressonância.

Será que o homem sempre conviveu com esta dor?

Dor e sofrimento são ou estão equivalentes?

Se pensarmos no filósofo, Michel Foucault, para ele o sofrimento estaria num processo de subjetivação, de produção de si.  Se a dor, algo físico, não passar pelo processo de subjetivação do sofrimento, de fala, de lugar, ficará numa espécie de paralisia, de congelamento. É como uma idéia que não conseguimos digerir e algumas pessoas ficam ruminando-a nos pensamentos.

O que convencionou-se chamar dor de trauma? O trauma nada mais é do que uma dor contínua e permanente, onde nos situamos numa impossibilidade de mover e agir no mundo entregues a uma repetição indizível. Diz das vivências traumáticas, particularmente aquelas relativas aos lutos. Passamos por diversos lutos durante a vida. Toda transformação, passagem, perda, mudança, escolha, envolverá um luto.

Será que um cenário caótico sempre esteve instalado em nós, ou varia apenas conforme os aspectos externos da sociedade?

Caótico:  a palavra caos (separação, desordem). Caótico ao passo de que eu não posso me antecipar ao que vai acontecer.  Não tenho o controle… Aliás, temos o controle do quê? Penso que a partir do momento que entramos em contato com este Caos interno, que ora e outra pode aparecer, podemos estabelecer formas de controle, como uma forma de digerí-lo, para posteriormente externalizá-lo através de uma palavra. Quando temos a impressão de que algo está descontrolado externamente, investigue se há algo dentro de você que precisa do seu controle.

Falar de Caos é  também falar de catástrofe, é quando o sabor da morte passa a nos habitar. O caos faz com que voltemos às sensações e registros do desamparo inicial.

Nesta modernidade respondemos sobre um pedido  implícito e explícito de aceleração, uma busca incessante pela produção e resultado a todo custo. Consequência: ou você dá uma pausa, ou o mundo pausa você!

O sofrimento é inerente ao ser humano, é um ponto comum onde todos o reconhecem. Porém ele é experimentado de forma individual e particular em cada pessoa. Diante disso  podemos rotular como “doença”de forma generalizada. O sofrimento se altera de pessoa para pessoa, cada um relata uma HISTÓRIA sobre esta experiência.

Com a psicanálise conhecemos que o sofrimento está correlacionado com frases, idéias, palavras amordaçadas, presas, carregadas de imagens e afetos que se deslocam e são substituídas por outras,  não digeridas,  que retornam de alguma forma expressas no corpo, no sonho, no comportamento, no discurso. Durante muito tempo o sofrimento psíquico não era alvo de escuta, muito menos percebido, estava apenas atrelado ao aspecto físico, orgânico. Com Freud o aspecto subjetivo, o psiquismo ganhou um lugar de escuta. Ele escutava a história individual que cada pessoa contava sobre aquela dor. Criou e desenvolveu um método para acessar a parte inconsciente da mente onde se instala o sofrimento psíquico, pois apenas aquilo que o paciente contava que já sabia na parte da consciência não alterava a intensidade da dor. Foi assim que entendeu que havia uma instância, o inconsciente, que ocupava um espaço bem maior do que a consciência. Surgiu a representação com a imagem de um iceberg, onde a parte pequena visível representava a consciência, e outra parte maior submersa, o inconsciente.

Segundo Freud no seu texto, O Mal- estar na Civilização: ”O sofrer nos ameaça a partir de três lados: do próprio corpo, que, fadado ao fracasso, não pode sequer dispensar a dor e o medo, como sinais de advertência; do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças da natureza, inexoráveis, destruidoras; e, por fim, das relações com os outros seres humanos( esta é a mais complicada).”

Por volta de 1890 um neurologista americano chamado Jorge Miler Beard descreveu uma síndrome chamada NEURASTENIA . Mas não quero me adentrar nos aspectos dos signos correspondentes a este nome.  Este médico colocou como causa destes casos de Neurastenia como o efeito da VIDA Moderna, a aceleração(hiperprodutividade). As pessoas saindo da “vida pacífica, harmônica” do espaço rural, migrando para a cidade industrializada.  As pessoas estavam trabalhando demais (isso em 1990, EUA).

Como identificamos SINTOMA: ele se coloca imperativamente para o sujeito: tem que ser feito, não consigo deixar de fazer… ou não o deixa fazer, ir, o inibe. Então qual é o critério: o prejuízo e  aperda da liberdade.

Em toda forma de sofrer há um fragmento de liberdade que foi perdido. Então o sofrimento é universal. Em cada sofrimento há uma parte a ser reinventada.  E os “normais”, os bem-sucedidos, aqueles que fizeram tudo certo, Cristian Dunkan os nomeia de normalopatas: aqueles que estão excessivamente adaptados (o mundo está caindo, mas comigo está tudo bem, está tudo certo). Lacan dizia que a normalidade é o pior dos diagnósticos, pois ela é sem esperança, sem desejo por mudanças.

O que podemos pensar é que todo sofrimento depende do seu modo de expressão “a forma como a gente fala do que sofre muda a forma que a gente sofre”. A forma como alguém que tem hipotireoidismo muda o hipotireoidismo como doença? Não, a doença continua lá. Mas a sua relação com sofrimento, a narrativa que ele constrói e relaciona com o modo de lidar muda…. O sujeito pode continuar com uma doença física, porém a forma de lidar e se relacionar com o sofrimento relativo a ela pode ser outro. (o sujeito cria uma narrativa, um discurso sobre a doença, relaciona-se com ela de forma ativa ou passiva e a projeta para o mundo).

Podemos pensar que toda forma de sofrimento é uma tentativa de laço social que pede por uma reorganização.

Cada vez que a gente articula o sofrimento em narrativa ele vira outra coisa.

Foi isso o que Freud inaugurou: a cura pela fala.

Aqueles por exemplo que voltaram da 1 Mundial Guerra não conseguiam falar sobre o que passaram lá. Construir uma narrativa sobre o sofrimento, foi o que uma autora, Catherine Malabou (filósofa 1959), nomeou de Subjetividade Pós- traumática (subjetividades que não conseguem mais se queixar). Paralisação.

Ha também aqueles que se atormentam com a sua verdade, com aquele passado, com aquela história, com aquelas pessoas que ficaram para trás. “Eu aqui bem e confortável, porém terei que lidar com minha história com aqueles que não conseguiram”. Este discurso pode causar internamente na pessoa uma sensação de não merecimento por estar bem e confortável, e isso se transformar num fantasma que  o atormentará. Esta sensação de não merecimento não lhe permitirá saborear o prazer do bom e do confortável.

O sofrimento psíquico, portanto, é REAL e faz parte da história humana, é importante entender a origem de cada dor, ser capaz de construir uma narrativa sobre ela e sentir que ela foi reconhecida.

 Qual a saída ? o AMOR.

Segundo a psicanalista Melanie Klein,“através da análise, chegamos aos conflitos mais profundos de onde surgem o ódio e a ansiedade, também encontramos lá o amor”. (KLEIN, 1934/1997, p. 299).

Nós precisamos ser cuidados pelo Outro. (mãe ou função materna).

Freud: Nosso aparelho psíquico tem que funcionar (mecanismo de autoconcervaçao) para não morrermos. Nós temos que nos organizar simbolicamente para que nossa vida biológica seja viável. (com o outro e através do outro).  O Eu só existe em relação ao Outro. Há uma experiência de Alteridade que é fundamental.

Para  Joel Birman, uma saída é criar dispositivos com laços de pertencimento que nos dê referência. É saber usar positivamente a angústia, com novos símbolos de criação, transformar essa angústia numa afirmação de viver, e não numa paralisação.

‘Nunca estamos mais desprotegidos ante o sofrimento do que quando amamos, nunca mais desamparadamente infelizes do que quando perdemos o objeto amado ou seu amor.” Freud

Amamos e odiamos ao mesmo tempo, a mesma coisa e a mesma pessoa. “O amor não é harmonia, é incômodo, é despertar, é provocação, é transformação, no sentido de fazer falar. “Jorge Forbes.

Caroline Gouvêa-

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