E se eu te contar que é necessário um pouco de falta para sobre-viver? 

*Caroline Gouvêa-CRP04/25492-15/03/2022

Primeiro você é, depois você faz. Você faz como você é. Primeiro você aprende e se desenvolver através de uma relação de dependência com o outro, num primeiro momento a mãe é a figura principal, para depois se tornar independente. A formação da identidade, de quem eu sou, depende desta primeira relação com o outro, se foi uma relação positiva ou negativa.

Nossa percepção do outro é projetada nele através dos nossos modelos internos introjetados. O sofrimento pode aparecer quando você anula totalmente quem você é para se enquadrar no Ideal do outro. É como se estivesse traindo a si mesmo.

Somos seres contornados por uma falta desde o primeiro momento de vida. Uma falta que no caminho do desenvolvimento promove um impasse, um fracasso, um buraco, um vazio, uma angústia, porém ela também gera uma busca que renova o saber sobre si mesmo e sobre o outro. Somos seres incompletos e desejantes. Exatamente por reconhecer esta incompletude, desejamos. No lugar em que há uma falta,  ali está o seu desejo! É possível também desejar a falta da falta.

Aquele que experimenta a sensação de que alguma coisa lhe falta, mesmo não sabendo o que é num primeiro momento, mas sabe, ocupa o lugar de sujeito do desejo, diz Jacques Lacan.

Para Lacan há uma diferença entre a falta, o vazio e o nada.

                                       “É importante, também, que o paciente possa reconhecer seu vazio, sua não-existência. Winnicott, em seu texto Medo do Colapso (1963b/1994), menciona que, se o vazio não é experienciado como tal, desde o começo, ele aparece, então, como um estado de não-integração, que é compulsivamente buscado. É somente a partir do reconhecimento da não-existência que a existência pode começar.”

Às vezes é uma dor que “Arde”, sem se “Ver”, como já dizia o poeta. É como uma ferida que dói, e não se sente. Como esperar paz, harmonia, felicidade nos corações humanos, “se tão contrário a si é o mesmo amor”? De onde vem esta ambivalência entre o amor, dor, raiva, agressividade, alegria e tristeza?

A prática da psicanálise foi e é construída pela via do amor, no sentido de fazer a falta falar e existir. Em análise entramos em contato com a perda, com o limite, com a falta. Amar é também aprender a dizer não. Um amor transforma-dor!

                                                                Aprende que quando está com raiva tem o direito de estar com raiva, mas isso não te dá o direito de ser cruel. Descobre que só porque alguém não o ama do jeito que você quer que ame, não significa que esse alguém não o ama, contudo o que pode, pois existem pessoas que nos amam, mas simplesmente não sabem como demonstrar ou viver isso. Aprende que nem sempre é suficiente ser perdoado por alguém, algumas vezes você tem que aprender a perdoar-se a si mesmo. Aprende que com a mesma severidade com que julga, você será em algum momento condenado. Aprende que não importa em quantos pedaços seu coração foi partido, o mundo não pára para que você o conserte. Aprende que o tempo não é algo que possa voltar para trás. Portanto… 

Plante seu jardim e decore sua alma, ao invés de esperar que alguém lhe traga flores. E você aprende que realmente pode suportar… que realmente é forte, e que pode ir muito mais longe depois de pensar que não se pode mais. E que realmente a vida tem valor e que você tem valor diante da vida! William Shakespeare.”

 

A parte de um narcisismo patológico lhe fazia acreditar ser uma espécie de semideus, um ser com um poder onipotente, almejando a identificação das suas escolhas no outro apenas para corresponder  à sua imagem e semelhança.

O ser humano atual, capturado por uma experiência de vazio,  está em busca de uma verdade absoluta completa, de um saber absoluto sem furos. Nesta busca incessante está se perdendo, alienando em si mesmo, adoecendo e sofrendo cada vez mais. Uma busca incansável para ter a “ felicidade” sem sofrimento e frustração. Ele quer ter o controle sobre tudo e quiçá sobre todos. Impossível! A felicidade escorre entre os dedos!

Há um furo na verdade. Temos um furo em nosso corpo onde essa marca diz que essa verdade é não toda. Fomos gerados por alguém e precisamos do outro para nos relacionarmos e sobrevivermos. Por isso continuamos a buscar o saber. Estamos vivos. Ou não? É possível reconhecer esta falta? Isso provoca estranhamento. Mas esse estranho pode ser mais familiar do que imaginamos.

Se nos aprisionarmos nesta verdade absoluta há o risco de uma alienação com a suposta impressão de deter o poder com esse saber absoluto. Será que é por acaso que em psicanálise fazemos referência ao “ suposto saber”? Suposto porque não é absoluto.

Como é difícil reconhecer que somos seres errantes, que a verdade é parcial, que o sofrimento é inerente ao ser humano, e que a angústia pode gerar movimento de cuidado, assim como aceitar nossa condição de incompletude. O ser humano atual quer mais, e mais, e mais… Mas não sabe o que quer, É apenas pelo ato compulsivo, a ideia e o afeto ficam deslocados e substituídos por outros objetos sem fim. Estamos num momento onde as adicçōes estão mais em evidência.

O prazer a qualquer custo. Paga-se um preço. Há um custo.

Uma insaciável busca por preencher um vazio, diferente da falta, e novamente ter a sensação de completude. Momentânea. Uma ilusão. O vazio continua ali.

E se eu te contar que é necessário passar pela experiência da falta, sentir uma dose de vazio para poder criar e sobre-viver?

Quanto mais o ser humano negar as emoções interpretadas como “negativas”, aquelas que o senso comum julga como inapropriada, e reforçam que apenas o pensamento positivo pode reinar, mais essas emoções “negativas” encontrarão uma forma de saída. Uma das formas de saída é através do corpo. Quanto mais negar e reprimir, mais intensa será a dor.  Amor e ódio, tristeza e alegria, cura e dor, são faces da mesma moeda, convivem juntas. Não dá para olhar para uma e não sentir a outra.

Lidar com as frustrações. Lidar com a ausência de uma presença idealizada e não se conformar em perder o ” paraíso”, pode provocar ódio e raiva.

Pode haver uma criança presa no corpo de um adulto que insiste e resiste para se manter infantilizada, uma vez que não quer perder aquilo que fora idealizado como impressão de paraíso e segurança. Ela não quer a liberdade pois isso envolve responsabilidade. Desta forma projeta nas suas relações a permanência deste infantil alienado por este “paraíso” que promove um “ganho de conforto”. Um desprazer com impressão de prazer.

O brincar é uma das condições da formação dos recursos simbólicos do nosso psiquismo : a criatividade, a imaginação e a fantasia. Para Freud (1908), a criança brincando cria um mundo próprio ou rearranja as coisas de seu mundo numa forma que lhe agrada. A criança leva seu jogo a sério e investe emoção nele. Se essas crianças estão apenas como receptoras do outro, numa posição apenas passiva, sem a possibilidade de estar numa posição ativa, como ficará o desenvolvimento dos recursos simbólicos? Muitas das vezes a criança, no brincar, através do mecanismo psíquico de deslocamento e substituição, interpreta aquela posição que fora reprimida anteriormente como seu oposto para o outro.

Ah, mas isso dói!

A dor também aparece como uma tentativa de cicatrização. Suportar ( dar suporte) a dor para curar. Em análise, a cura não significa que a ferida deixou de existir,  significa que ela não controla mais a sua vida e você pode lembrar dela sem sentir tanta dor.

É preciso a falta, uma dose de vazio para buscar o movimento e não ficar paralisado, congelado e alienado em si mesmo. A presença excessiva do objeto de amor produz uma simbiose alienante , o sujeito não faz vínculo com o outro, e se perde em si mesmo. Os estados traumáticos aparecem por duas vias: – estimulação excessiva e desamparo – se inscrevem de tal forma que deixam uma tendência a serem revividos, a reprodução da dor que então levaria a uma repulsa do objeto, o que levaria ao que Freud chama de defesa primária ou recalcamento.

SegundoFreud os mecanismos de defesa são universais, ou seja, todas as pessoas fazem uso deles, em menor ou maior grau. E eles são importantes para um ego sadio e integrado. Porém, o seu uso exacerbado pode ocasionar um funcionamento  psicológico que não é considerado integrado para o sujeito, ele pode ficar por muito tempo cindido e dividido.

A arte de se equilibrar na vida está na linha tênue entre o tempo do amor que apresenta a falta, o tempo do vazio e o tempo de suportar ( dar suporte) a dor.

“Ela bebia-lhe os risos cálidos e os poemas sussurrados e assim, lentamente, em seu mundo de silêncios, começava a brotar um novo universo ( repleto de palavras e significados), porque o sentimento que lhe nascia fazia crescer sua alma… Nunca mais, para ela, haveria a solidão”.”

                                                           E quando não houver flor, flores- serei.

*-Caroline Gouvêa S. Wallner-